Discordou do Despacho n.º 7247/2019 que diz estabelecer “as medidas administrativas que as escolas devem adotar” com vista ao “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa”? Assinou a petição pedindo a sua suspensão? Então fique sabendo que não sabe ler, que não percebe, que quer fazer sofrer a Leonor… enfim capacite-se de que a questão que coloca não é a verdadeira questão. Ou que sendo verdadeira para si é na realidade uma falsa questão.

O que lhe passou pela cabeça. a si, leitor, feliz habitante desta Europa a caminho da suprema harmonia,  para querer um papel que não o de sujeito passivo das causas apresentadas pelas pessoas que estão no lado certo da sociedade e das notícias, o que no caso vai dar ao mesmo? Como não percebe a dialética libertadora subjacente à produção legislativa governamental que proíbe que vejam publicidade a bolachas as mesmas crianças e adolescentes que a mesma legislação considera capazes de escolherem o seu género?

Como artigos vários e diversos membros do Governo logo trataram de explicar o Despacho n.º 7247/2019 não previa nada daquilo que os seus contestatários apontavam. O secretário de Estado João Costa explicou “Não estamos a falar de uma imposição ou modelo em que cada aluno vai à casa de banho que quer quando lhe apetece”. No limite acabava-se com as crianças em causa a não irem a casa de banho alguma, como acontecia num artigo do Polígrafo que, no seu afã de explicar a sem razão das críticas ao Despacho n.º 7247/2019, concluiu o seguinte: “o Governo não obriga as escolas a deixarem que “um rapaz, de qualquer idade, que se identifique como rapariga, pode utilizar os balneários femininos mesmo tendo os órgãos sexuais masculinos” e vice-versa. O que é assegurado através do referido diploma é que um rapaz que se identifique como rapariga não seja obrigado/a a utilizar os balneários masculinos, ou que uma rapariga que se identifique como rapaz não seja obrigada/o a utilizar os balneários femininos. Acrescem as situações de identidade não binária

Na verdade só não se dão alvíssaras a quem perceber a que casa de banho vão afinal as crianças a que se refere o despacho porque provavelmente elas, tal como os seus colegas, não vão a casa de banho alguma, pois as instalações sanitárias das escolas portuguesas estão degradadas, a sua limpeza é muito deficiente e sobretudo são muito poucas: no 1º ciclo, em média, há uma casa de banho por cada 63 alunos e, no 2º ciclo, um WC por cada 140 alunos. Infelizmente, em Portugal, os alunos, seja qual for o seu sexo e independentemente do género com que se identificam, evitam ir à casa de banho das suas escolas, com todo o prejuízo que daí advém para a sua saúde, porque elas não funcionam de forma aceitável.

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Dir-se-á então que o Despacho n.º 7247/2019 não passa de uma peça demagógica, minoritaríssima (segundo dados apresentados pela Lusa serão aproximadamente duzentas as crianças abrangidas pelo despacho) e que, não fosse a agenda ideológica do Governo, cada escola resolveria caso a caso, como aliás se resolvem inúmeras outras situações. Dir-se-ia, e note-se que isso já era ter muito para dizer. Mas a demagogia é o menor dos problemas deste despacho que, como aliás explica o Governo, prevê mais, muito mais acrescento eu, e matéria bem mais complexa que a temática das casas de banho: o Despacho n.º 7247/2019 faz de cada aluno das escolas portuguesas uma potencial vítima dos activistas do género, um ser a reeducar. E aí já não estamos a falar dos tais duzentos alunos mas de todos eles porque a todos eles se pode aplicar o previsto no Artigo 4.º do Despacho n.º 7247/2019.

O Artigo 4.º desse despacho intitulado “Mecanismos de deteção e intervenção” é próprio de um Estado totalitário. Leia-se bem o que lá está escrito:

“1 – As escolas devem definir canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença.”

Ou seja, na escola alguém – escolhido com que critério? – detecta a partir da sua observação ou de uma denúncia que uma criança manifesta uma identidade ou expressão de género, que não corresponde à identidade de género à nascença. Note-se que identidade ou expressão de género são conceitos em si muito mais vagos, subjectivos e latos que a transsexualidade. É total o arbítrio para que estes funcionários escolares do género detectem estar diante de uma criança que manifesta uma identidade ou expressão de género, que não corresponde à identidade de género à nascença.

O que acontece a seguir é o suficiente para que qualquer um que tenha saúde e meios emigre: “2 – A escola, após ter conhecimento da situação prevista no número anterior ou quando a observe em ambiente escolar, deve, em articulação com os pais, encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, com o objetivo de reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem.”

Portanto, com base numa apreciação feita não se sabe em que termos começa um processo, não se sabe coordenado por quem e muito menos se percebe com vista a quê. Pode, por exemplo, a escola decidir que a criança deve mudar de género? Que poderes, competências, saberes têm as escolas para desencadear um processo destes? E quem é que numa escola pode ser obrigado a assumir responsabilidades num processo desta natureza: os professores? Ou vai franchisar-se esse trabalho para aquelas associações já contratadas para leccionarem Educação para a Cidadania e que podem passar da redacção de questionários para a produção de ordens sobre a vida das crianças?

Muito sinceramente algum de nós está a imaginar ver-se “em articulação” com umas criaturas ad hoc que nos informam que o nosso filho, neto, sobrinho… manifesta uma identidade ou expressão de género que eles determinarão (a lista mais actualizada conta 58 géneros pelo que as possibilidades são múltiplas) e que há que iniciar um processo com vista ao que eles definem como “desenvolvimento saudável da criança ou jovem”?

Nada disto é novo: as crianças já tiveram de ser reeducadas para viverem numa sociedade sem classes. Houve até quem defendesse que considerar a pedofilia um crime era uma forma de o capitalismo impor o seu controlo sobre o corpo. Agora é a ideologia de género a cumprir esse papel totaliário do experimentalismo social: do Homem Novo à Pesso@ apenas muda o vocabulário.

O que também não é novo – e por isso chegámos aqui – é considerar que esta agenda não só não pode como também não deve ser contestada. Que estas nunca são as verdadeiras questões. Ou que sendo verdadeiras nunca é o momento oportuno para as discutir. Ou que sendo o momento não se está a discutir da forma correcta… Eis a armadilha da falsa questão.

A armadilha da falsa questão levou à instituição da presente ditadura das minorias, à criação de um clima sufocante de auto-censura, a campanhas fulanizadas de perseguição a quem manifesta um pensamento divergente e à criminalização da própria referência à realidade. A liberdade de expressão é hoje um privilégio para quem não depende de um emprego e de quem pela idade já não tem muito a perder.

Como chegámos aqui? Há décadas uma parte da sociedade começou por alienar o seu direito a impor questões chegando-se ao presente paradoxo de termos agora como as verdadeiras questões as questões outrora classificadas como falsas: a violência doméstica antes de se ter tornado na presente arma de arremesso contra o heteropatriarcado branco foi apresentada, pelos gestores da verdade das questões, como um drama de faca e alguidar que nem valia a pena abordar porque a luta de classes resolveria esses desvios pequeno-burgueses. Idem para a defesa do ambiente em que a solidariedade socialista com “mon ami Mitterrand” levou até a que Portugal tenha praticamente silenciado o assassínio, em 1985, pelos serviços secretos franceses, do fotógrafo português Fernando Pereira, activista do Greenpeace. E no caso dos refugiados, os mesmos – e em alguns casos são rigorosa e fisicamente os mesmos – que em 1975, em nome do apoio à descolonização, tentaram impedir portugueses brancos e negros de deixar África agora se pudessem transferiam a população dessa mesma África para a Europa.

Sim, chegámos aqui porque enquanto uma parte da sociedade foi recuando porque as suas questões nunca eram as verdadeiras questões, a outra conseguiu impor não só as suas questões como também fazê-lo a  um ritmo cada vez mais alucinante. Mal se sai de um assunto-causa já outro aí está e assim sucessivamente sem que haja tempo para reflectir no que se acabou de aprovar. Se por acaso um escolho se levanta nessa marcha logo somos avisados, como aconteceu no caso da eutanásia, que “haverá lei”.

Ao contrário do que escreveu o Miguel Pinheiro a propósito do Despacho n.º 7247/2019, acho que de facto existe uma guerra cultural. Ou melhor uma situação de controlo cultural de que a estupefação por este despacho ter sido contestado é um sinal.

Com a esquerda a fazer a apologia das contas em dia e a sociedade portuguesa a ficar aprisionada na tenaz de uma ditadura fiscal versus um Estado que não assegura os serviços mínimos aos cidadãos, a oligarquia já nem esconde ao que vem: “Bloco quer mais funcionários públicos e quotas por raça nas universidades”; “António Costa: Vou analisar o parecer [da PGR sobre as incompatibilidades] e, se concordar homologo, se não concordar não homologo”… a armadilha da verdadeira questão tornou-se no instrumento de controlo do pensamento não alinhado. Mas se à primeira todos caem e à segunda só cai quem quer, à terceira só cai quem é parvo.