Há escândalos, e depois há escândalos repugnantes, como o abuso sexual de menores no Reino Unido, na área metropolitana de Manchester. Durante anos, até à década de 2010, gangs de pedófilos puderam violar centenas de meninas de famílias pobres, perante a passividade da polícia, magistratura e serviços sociais. Porquê? Porque as crianças eram inglesas, mas os pedófilos eram imigrantes ou descendentes de imigrantes do Paquistão. Polícias, magistrados e assistentes sociais recearam que a repressão da pedofilia fosse vista como uma rusga “racista”, ou justificasse dúvidas sobre a política migratória. A prioridade não foi proteger as meninas, mas a “imagem” das autoridades e dos migrantes.

O caso voltou ao debate político porque o actual primeiro-ministro, Keir Starmer, terá estado, quando magistrado, envolvido no encobrimento, e porque Elon Musk comentou a história no X. Se houvesse dúvidas sobre a persistente dificuldade do establishment em digerir o escândalo, bastaria notar que a imprensa bem-pensante só encontrou um único motivo de indignação nesta história abominável: Musk ter escrito sobre o assunto.

Estamos aqui perante a mesma mentalidade que fez a polícia em Nova Orleães, após o atentado do Ano Novo, negar que fosse “terrorismo” e depois identificar o terrorista como “texano”. Como é que chegámos a este ponto? Porque é que, numa democracia e num Estado de direito, as autoridades enganam e acham que devem enganar? Porque é que, em países com liberdade de imprensa, a comunicação social, tradicionalmente a grande escrutinadora do poder, se identifica agora com quem manda e colabora com zelo nos seus embustes? Porque a maior parte dos políticos, funcionários e jornalistas habitam um aquário ideológico, alimentado pelo esquerdismo woke, em que a população é imaginada como uma massa estúpida e racista, totalmente susceptível às sereias da “extrema-direita”. Para as autoridades e para a comunicação social, a grande missão é agora escamotear e deturpar qualquer informação que possa estimular os preconceitos da plebe e ser “explorada” pelo “populismo”. Vivemos assim num regime em que as migrações descontroladas, a criminalidade, a inflação ou as insuficiências dos serviços públicos não são verdadeiramente problemas. O único problema é o que a “extrema-direita” possa fazer desses problemas para alvoroçar a populaça. Por isso, todos os encobrimentos e mentiras estão justificados.

Como estamos longe dos tempos do Watergate, em 1972-1974. Também Richard Nixon justificou as suas ilegalidades e imposturas como necessárias na resistência à subversão. A subversão que o incomodava, porém, era “comunista”. Não convenceu ninguém. Hoje, se Nixon optasse pelo espantalho “populista”, teria talvez o Washington Post a colaborar nos seus encobrimentos. Lembrem-se disto: o ano passado, até ao debate de Junho, o governo de Biden teve toda a ajuda dessa grande imprensa para dissimular o estado mental do presidente. A fraude era nobre, porque se tratava de resistir a Trump.

Muitas são as coisas que estão a fragilizar as democracias. Mas não haverá talvez outra mais grave do que a desconfiança das oligarquias políticas e jornalísticas em relação à população. Os seus efeitos são corrosivos. Por um lado, permite às oligarquias manterem uma boa consciência enquanto omitem, mentem e faltam aos seus deveres: vale tudo, para impor percepções virtuosas. Por outro lado, o actual regime de deturpação e ocultamento da informação, como qualquer regime de censura, serve sobretudo para legitimar a suspeita dos cidadãos em relação a tudo o que é oficial e estabelecido. Uma democracia, em que os governantes são supostos representar os governados, respeitar a lei e servir o bem público, não pode funcionar assim. Deveria ser óbvio. Mas parece que não é.

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