Entre a quarentena e o desconfinamento, é natural que algumas coisas passem despercebidas. Uma delas é a agonia da esquerda radical. Vale no entanto a pena dar-lhe atenção, porque ainda não foi há muito tempo que radicais e populistas prometiam partilhar o mundo entre si, como outrora a Espanha e Portugal em Tordesilhas.

Lembram-se? O Syriza governava a Grécia e Varoufakis passeava a sua vaidade pelas cimeiras europeias; o Podemos, em Espanha, ameaçava fazer ao PSOE o que o Syriza fizera ao Pasok; no Reino Unido, Jeremy Corbyn tomara conta do Partido Trabalhista e prometia apagar Margaret Thatcher da história; nos EUA, Bernie Sanders, o fã número um da ditadura cubana, parecia destinado a ser a alternativa a Trump; em Portugal, o BE clamava ter forçado o PS a reverter a “austeridade”; e quase todos, muito à vontade, falavam outra vez de “socialismo”, como se o muro de Berlim nunca tivesse caído em 1989.

Num ano, quase tudo mudou. O Syriza foi derrotado e apeado; o Podemos está no governo, mas sob a chefia do PSOE e, segundo Varoufakis, “finished”; Corbyn caiu depois de sujeitar os Trabalhistas à pior derrota eleitoral desde os anos 1930; Sanders foi esmagado nas primeiras voltas das primárias; e, por cá, o BE engole cativações e as sondagens ameaçam-no de ser ultrapassado pelo Chega. Na Venezuela, que foi a União Soviética deste radicalismo, o chavismo, sem o dinheiro do petróleo, prende, mata e faz passar fome.

É provável que este radicalismo tenha uma história breve. No princípio do século, ainda a esquerda vivia ao som da política de “terceira via” de Bill Clinton e Tony Blair. Foi o ambiente apocalíptico criado com a guerra do Iraque (2003), a crise financeira (2008) e, depois, as alterações climáticas, que permitiu aos restos grisalhos da extrema-esquerda dos anos 70 saírem dos seus túmulos universitários e arranjarem novos recrutas. Quem já os conhecia, pôde constatar que, talvez com menos citações de Marx, estavam na mesma. Como sempre, encararam cada questão de um ponto de vista para o qual a única saída está, não em reformas, mas na destruição do Estado de direito, da democracia representativa, e da economia de mercado, caricaturados como meros mecanismos de dominação social ou racial. De resto, o “populismo” serviu-lhes de pretexto para tentarem submeter a esquerda (e até alguma direita desesperada por ser aceite) à disciplina de um frentismo antifascista dirigido por eles, e o “politicamente correcto” para chamarem “racistas” a toda a gente.

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O que é que os derrotou? A ligação umbilical à tradição comunista foi a sua primeira limitação. Os velhos hábitos do “internacionalismo” e do terceiro-mundismo atrapalharam-nos, quando se tratou de explorar a revolta contra a globalização. Opuseram-se à circulação de capitais, mas defenderam a imigração sem regras e sem limites. Viram assim as “suas” antigas classes trabalhadoras a preferir Trump nos EUA ou Marine Le Pen em França. Le Pen herdou o voto comunista. Em Portugal, a votação do Chega já coincide com a votação do PCP na periferia de Lisboa e do Alentejo.

O radicalismo no século XXI fingiu, mais uma vez, falar em nome dos descamisados e das “minorias”. O seu apoio, porém, nunca esteve aí, como se viu nos EUA, onde foi o eleitorado afro-americano quem destruiu a candidatura de Sanders. Está na elite universitária e mediática. É uma força, mas também uma fraqueza. O desejo de “superioridade moral” da classe média urbana abriu-a ao radicalismo. Mas não a fez negligenciar os seus confortos. Quando se trata de destruir, hesita. É que ao contrário dos míticos proletários de Marx, tem muito a perder. Por isso, o Syriza teve de se sujeitar a Bruxelas, ciente de que os seus eleitores não o seguiriam numa ruptura monetária. Corbyn, que desejava o Brexit para fazer a sua revolução socialista, precisou de ser equívoco, para não espantar o voto urbano de que dependia. Sim, este radicalismo era mesmo “burguês”, para usar a velha terminologia esquerdista. Nunca pôde ser consequente.

Falhou. Mas não acabou. Está talvez, como o esquerdismo dos anos 70, na fase mais perigosa. Esse, quando se tornou claro que o proletariado dispensava a revolução, gerou o terrorismo dos Baader-Meinhoff, das Brigate Rosse, dos GRAPO, ou das FP-25 em Portugal. Hoje, nos EUA, os “Antifa” já transformam qualquer protesto, como no caso do homicídio de George Lloyd,  numa orgia de violência. Em Espanha, o Podemos tenta ressuscitar a guerra civil, manipulando a memória dos anos 30. Em Portugal, os radicais esforçam-se por importar a visão racial norte-americana, esperando um dia obter os confrontos que lhe estão associados. A violência é sempre a última palavra do radicalismo.