Pela segunda vez, preparamo-nos para viver o tempo pascal em recolhimento. Atravessamos o segundo ano mais estranho das nossas vidas.
O instinto do ano passado, em que respirámos fundo e fomos aguentando até isto passar, já não é eficaz para este ano. Passou-se um ano e parece que estamos na mesma. Mais cansados. Menos tolerantes com os erros. Mais indiferentes com a nossa liberdade coartada. Menos abertos a discutir caminhos e soluções, como se a única alternativa fosse confiar cegamente em quem já nos provou que não é de confiança.
Um ano depois, aqui estamos com um bloco de post it’s prontos para rotular tudo e todos. Logo agora, que queremos adaptar a linguagem à tolerância, salta um post it de “negacionista”, “irresponsável” e outros adjetivos que tais, a todos os que ousem criticar o Governo ou pensar diferente. É obrigatório ser solidário e acrítico com os que tomam decisões. Até já se acha normal que figuras ilustres, da esquerda à direita e até alguns jornalistas, façam abaixo-assinados a pedir censura às televisões que criticam e questionam.
Têm razão os que acusam os nossos governantes de, à custa do prolongamento do estado de emergência, estarmos a cair num caminho perigoso de vigilância aos cidadãos e de imposição de uma escolha única. A de quem nos governa.
Ora, em democracia, isto não pode acontecer. Tem que haver lugar para os que pensam como nós, mas, sobretudo, tem que haver lugar para os que não pensam como nós. E tem sempre que haver espaço para o escrutínio. A punição, a perseguição e a catalogação dos divergentes é uma pandemia que surge como um vírus invisível e que acaba por nos matar.
A liberdade não está confinada. A liberdade é, sobretudo, uma exigência inextirpável que nasce connosco. Podemos estar fechados entre quatro paredes, mas depende de nós não deixarmos que a nossa liberdade seja afetada.
Esquecermos ou desleixarmos a nossa exigência de liberdade abre espaço para a manipulação. E quando abdicamos do nosso juízo e da nossa escolha, há sempre quem queira ocupar esse espaço.
Um bom exemplo disso ocorreu há poucos dias. No tiro de partida para a batalha autárquica que se avizinha, António Costa, deslumbrado com os efeitos desta moda de exercer o poder sem contraditório, não fez cerimónia em traçar os objetivos para os seus candidatos: “O PRR tem, em grande medida, um conjunto de projetos e programas cuja execução depende exclusiva ou essencialmente das nossas autarquias locais. Como grande partido autárquico, temos que nos organizar e alinhar estratégias aos vários níveis, central, local e regional para obter o melhor resultado. Tem de haver uma linha comum do que são as candidaturas do Partido Socialista nesta recuperação do país.”
Dito de outra forma: o PS está no poder, não tem contestação, vai ter uma mão cheia de dinheiro para distribuir, quem for socialista recebe a maior parte.
A Páscoa, principalmente para os católicos, mas também para os que o não são, é um bom momento para pensar e viver a liberdade. Comecemos por estar atentos aos sinais que vemos à nossa volta. À indiferença que sentimos quando ouvimos coisas que noutros tempos nos fariam saltar a tampa. Àqueles que se querem substituir ao nosso juízo, começando por dizer que agem para o nosso bem e, depois, querendo tomar conta de todos os pormenores da nossa vida. Nenhum vírus nos pode retirar a liberdade. Nem nenhum governo, mesmo que fosse competente, era bom o suficiente para se apoderar de algo que é nosso e só nosso.