Quando Draghi foi nomeado PM italiano, numa conversa com um grupo de pessoas, disse que o mais provável seria que a solução tecnocrata não funcionasse. Draghi tinha a confiança de Bruxelas, dos outros líderes europeus e dos mercados. Mas tudo isso, por mais importante que seja, é insuficiente num regime democrático.

Quando um dia a antiga líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, disse que certas reformas exigiam a “suspensão da democracia”, muitos ficaram chocados (e com razão). Mas, agora, muitas dessas pessoas, ficaram entusiasmados com a solução Draghi em Itália. A escolha de Draghi não foi anti-democrática – foi votado pela maioria dos deputados – mas foi uma espécie de suspensão da democracia.

Draghi nunca foi eleito. Por isso, não só dependia inteiramente dos deputados, como, e mais grave, não gozava da mesma legitimidade democrática daqueles que o apoiavam. Draghi esteve sempre dependente dos deputados, por isso precisava tanto do apoio parlamentar. Além disso, não tendo sido eleito, Draghi teria sempre enormes dificuldades se as coisas começassem a correr mal. A instabilidade criada pela guerra na Ucrânia e o agravamento do custo de vida enfraquecem ainda mais um líder não eleito. A maioria do eleitorado italiano, a atravessar dificuldades, não olha para Draghi como o seu eleito. O vínculo fundamental da democracia, entre o eleito e o eleitor, não existia com Draghi. A democracia não é um concurso de popularidade nem uma competição de competências. É um regime com mecanismos muito claros de legitimidade política. Quem não é eleito, é fraco.

A crença de que uma pessoa competente, com as ideias certas consegue reformar um país mostra uma enorme incompreensão sobre a natureza da democracia. Os mandatos reformistas conquistam-se nas eleições com o apoio da maioria da população. Não se fazem reformas com mandatos de Bruxelas, por mais dinheiro que venha da Europa, nem com o apoio dos mercados.

Também não deixa de ser estranho que muita gente, que está sempre assustada com ameaças às democracias de potenciais ditadores, acreditem tanto nos líderes indispensáveis. Obviamente, não me passa pela cabeça que Draghi pudesse ameaçar a democracia italiana, mas o futuro de um país democrata não depende de um líder, por mais qualidades que tenha.

Não consigo prever o futuro imediato da política italiana, mas só um mandato democrático poderá reformar o país. Como se viu nos últimos anos, as soluções tecnocráticas, a suspensão da democracia, não mudam o país. Ou a democracia italiana reforma a Itália, ou nada o fará.

PS: Para que não haja dúvidas, o meu argumento é sobre a natureza da democracia. Não constitui um ataque a Draghi. Foi um excelente Presidente do Banco Central Europeu. E poderia ser um grande Presidente do Conselho europeu, a partir de 2024. Mas é muito complicado ser PM de uma democracia ser ter sido eleito. Parece-me, aliás, óbvio.      

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