Na semana passada, a SIC transmitiu uma reportagem com o poderoso título «Quando o ódio veste farda». O trabalho, realizado por um «Consórcio de Jornalistas de Investigação», debruça-se sobre a prática de crimes de ódio praticados nas redes sociais por agentes das forças de segurança. É, antes de mais, a demonstração de que há imbecis por toda a parte, e que mesmo as polícias não escapam a essa inevitabilidade: o que ali se retrata é uma série de comentários que podem constituir a prática de crimes vários e que, por terem sido cometidos por agentes de segurança pública, devem ser tratados e punidos sem especial decoro, na medida em que aqueles, em virtude das funções que exercem, têm o dever de agir acima dos seus instintos e reflexos mais básicos.
Mas é também um trabalho enviesado. No segundo episódio, por exemplo, aborda-se o fim da experiência do policiamento de proximidade no bairro da Cova da Moura, em 2005, sem um contexto e uma explicação, como se tivesse sido uma simples vontade de uma polícia pejada de racistas. Convém, pois, relembrar o que sucedeu em 2005: os polícias recusaram continuar a patrulha de proximidade depois de três agentes terem sido assassinados no bairro, com recurso a arsenal de guerra, um dos quais com mais de 20 tiros no corpo, 6 dos quais na própria face. Há por ali, de facto, não uma intenção jornalística de mostrar uma realidade, mas de deixar clara uma perspectiva política.
O trabalho é também surpreendente, na medida em que nunca suspeitei que fosse necessária uma reportagem destas, com base em 600 agentes num universo de cerca de 43 mil, e muito menos um «consórcio de jornalistas de investigação», para se saber que há pessoas com convicções racistas na comunidade, e que algumas dessas pessoas são profissionais de polícia. Como se uma só alma com dois ouvidos e dois olhos atentos ao que se passa por aí não fosse suficiente para descobrir essa evidência – mas talvez fosse preciso dar um tom de gravidade peculiar ao trabalho para o justificar como algo necessário e luminoso.
O que deixou em mim a suspeita de que o trabalho não foi feito para ser visto pelos portugueses em geral, mas tendo como alvo certos tipos de pessoas: por um lado, as que, eventualmente mais alheadas do que se passa para lá das fronteiras do Campo Grande e do rio Tejo, pudessem tomar conhecimento do que se passa naquilo que é transmitido como uma espécie de sub-mundo civilizacional – mas que é, no fim de contas, a vida normal de milhões de habitantes deste país; e, por outro lado, estas últimas enquanto destinatárias de uma visão política de natureza confrontacional.
Suspeito, pois, que todo aquele discurso serve essencialmente para que permaneça alimentada junto das elites, mas também e acima de tudo das classes suburbanas, a ideia de que há grandes divisões sociais em Portugal, mas que essas divisões não separam os de cima e os de baixo – apenas estes últimos entre si, em que uns são retratados como virtuosos e vítimas e os outros como proto-fascistas e agressores.
Ora, a manutenção desta ilusão interessa à manutenção de um status quo em que as grandes massas populacionais se confrontam entre si, num cenário de ilusória luta identitária e política, e guardam a incapacidade de escrutinar um poder cada vez mais concentrado, de acesso limitado, nepotista e castrador de liberdades básicas. Veja-se, a este propósito, a forma desinteressada como o país não mediático assiste ao desfilar das propostas de revisão constitucional. Adiante.
Com mais este trabalho jornalístico e, sobretudo, com o debate que ele propositadamente gerou, cavou-se mais um bocadinho o buraco onde reside a ideia de que a preta das limpezas que vive no bairro social e o polícia que vive num prédio de má construção ao lado do mesmo bairro social estão mais separados do que unidos. As elites, da esquerda e da direita, incluindo boa parte do «jornalismo de causas» que para aí ulula, preferem passar o tempo a discutir o racismo e o ódio (que existe, sem dúvida), e a subscrever o seu próprio atestado de superioridade moral e a sinalizar a sua virtude, em vez de tentarem compreender a raiz dos vários males que ali estão em causa. O que se oferece é apenas a criação de debates estéreis, sem real interesse em olhar para um problema sério e procurar oferecer-lhe soluções, e dando apenas mais armas narrativas a quem vive os problemas reais no dia-a-dia para se odiarem mais e para se julgarem mais divididos pela raça que unidos pela condição social.
O que é certo é que o preto do bairro social e o polícia branco do subúrbio se quiserem um empréstimo de um banco têm de o pagar e prestar garantias, e que se cometerem um crime têm mesmo de responder por ele – ao contrário do que sucedeu com tantos daqueles que boa parte da comunicação social protegeu ao longo de décadas. Ao mesmo tempo que gritam e dominam o espaço público, aqueles que vivem política e mediaticamente deste alegado choque de civilizações interno, isto é, os movimentos racistas e os antigos partidários da luta de classes, agora mais virados para as causas identitárias, vai-se tornando cada vez mais notória a falta de um discurso político e mediático que parta da existência de um chão comum entre os cidadãos, sobretudo entre os «descamisados» da sociedade, que nos queira pôr em contacto uns com os outros e não uns contra os outros. Esse vazio existe (e não, não será, como nunca foi, o PCP a preenchê-lo, mais ocupado que tem estado nas últimas décadas a fazer a gestão do seu poder autárquico, indiferente a estes problemas que, pasme-se, não raras vezes subsistem em concelhos onde os comunistas governam) e está a permitir a construção de um caminho perigoso, quer de um lado, quer do outro, e provavelmente já sem retorno. E, para mal dos meus pecados, é nesse vazio que estou.
(Continua.)