“A vida humana é inviolável” – é o que afirma de forma lapidar a Constituição portuguesa no artigo que encabeça o elenco dos direitos fundamentais. Uma brecha nesse princípio fundamental, verdadeiro alicerce, faz abalar todo o edifício desses direitos. Como aprofundadamente demonstrou o artigo de José Lobo Moutinho “Eutanásia: a inevitabilidade da rampa deslizante“, a brecha nesse alicerce torna inevitável, por razões lógicas, o fenómeno da “rampa deslizante”, que ocorrerá sempre, mais cedo ou mais tarde.
A experiência dos países que legalizaram a eutanásia e o suicídio assistido permite verificar a sucessão de passos cada vez mais permissivos quanto a tal prática: das situações de doença terminal às de doença incurável ou deficiência; das situações de sofrimento físico às de sofrimento psicológico; das situações de pessoas doentes às de pessoas não doentes mas “cansadas de viver”; das situações de pessoas conscientes às de pessoas inconscientes que formularam o seu pedido antecipadamente, ou que não o podem fazer devido a grave deficiência; das situações de pessoas adultas às de crianças ou recém-nascidos.
Essa evolução é analisada com pormenor, no que à Holanda se refere (incluindo a evolução da jurisprudência, que antecedeu a evolução legislativa) no clássico livro de Herbert Hendin, Seduced by death (W.W.Norton & Company, Nova Iorque e Londres, 1997), e no mais recente livro de Gerbert van Loenen, Do you call this a life?, Ruse Lattner, London, Canadá, 2015.
Embora os proponentes da Lei recentemente aprovada entre nós sempre tenham dito que ela restringe a eutanásia e o suicídio assistido a situações excecionais, excluindo muitas das que acima se referem, importa salientar que essa Lei não se limita a dar o primeiro dos passos mencionados: o das situações de doença terminal e de sofrimento físico. Não distingue entre sofrimento físico e psicológico (o que significará que este também está previsto). Abrange “doenças incuráveis e fatais” e “lesões definitivas”, ou seja, situações em que a vida se poderia prolongar por anos ou décadas. Apesar de, eufemisticamente, se falar em “antecipação da morte”, dando a entender que esta está próxima (e como se provocar a morte de outrem, seja qual for o motivo, não fosse sempre uma forma de “antecipar a sua morte”, pois ninguém é imortal…).
Nem sempre foi dado esse passo (de ir para além da doença terminal) logo de início. Assim sucedeu na Bélgica, mas não no Canadá. E a lei do estado de Oregon, o primeiro dos estados norte-americanos a legalizar o auxílio ao suicídio, continua a restringir esse possível auxílio a situações de doença terminal, fixando até um prazo de seis meses para o prognóstico da mesma.
É verdade que no Canadá se está agora a discutir o alargamento da Lei vigente (desde 2016), de modo a abranger as situações de doença não terminal ou deficiência. Essa discussão surge na sequência de decisões judiciais que pretendem impor esse alargamento, invocando a prevalência do princípio constitucional da autonomia individual e auto-determinação.
Na verdade, se é dada prevalência à autonomia sobre o valor da vida, porquê restringir a legalização da eutanásia e do suicídio assistido às situações de doença terminal? Mas, então, também pode dar-se o passo seguinte da “rampa deslizante”: porquê restringir essa legalização às situações de doença?
Compreende-se, por isso, que, desde há vários anos e com probabilidade de aprovação, se discuta na Holanda a legalização da eutanásia e do suicídio assistido de pessoas não doentes, “cansadas de viver” ou que considerem a sua vida “completada”.
Na Bélgica, esse passo ainda não foi dado no plano legal. Mas há quem considere que, na prática, é isso que se verifica em muitas das situações em que são invocadas “polipatologias” como motivo da prática da eutanásia. É o que afirma um estudo publicado há dias no The Journal of Medicine and Philosophy, Euthanasia in Belgium, “Shortcoming of the Law and Its Aplication and the Monitoring of Pratice“, em que se denuncia, mais uma vez, a ineficácia dos limites legais a essa prática (sendo que dois dos autores do estudo não recusam a eutanásia no plano teórico).
É também o passo que foi dado pelo Tribunal Constitucional alemão, invocando a prevalência do princípio da autonomia individual e auto-determinação sobre o valor da vida: não deverão ser colocados entraves ao auxílio ao suicídio que não se relacionem com a autenticidade do pedido (o Tribunal Constitucional austríaco, entretanto, seguiu uma orientação semelhante, embora não tão radical). Na linha dessa orientação, foi há dias apresentado no parlamento alemão (ver Die Tagespost, 21/1/2021) por deputados de três partidos diferentes (FDP, SDP e Die Linke), uma proposta, que, partindo do princípio de que “a proteção da vida contra a autonomia não pode, e não deve, existir“, afirma que “qualquer pessoa que quiser pôr fim à sua vida de forma autónoma tem o direito de para tal pedir ajuda” (bastará que seja maior de idade e tenha recorrido a um centro de aconselhamento).
É a este extremo da “rampa deslizante” que poderá chegar a brecha no princípio da inviolabilidade da vida humana, que a Lei há dias aprovada pelo Parlamento português já representa.
A consagração claríssima e inequívoca desse princípio no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição portuguesa é, porém, um obstáculo a essa brecha. Essa Lei viola tal princípio constitucional.
É isso mesmo que afirma a carta aberta da Associação dos Juristas Católicos ao Presidente da República recentemente publicada.
A inviolabilidade da vida humana é afirmada nesse artigo 24.º, n.º 1, da Constituição de modo assertivo, categórico e incondicional. Essa inviolabilidade não comporta exceções. Não é exceção a essa inviolabilidade o eventual consentimento do titular da vida (consentimento cuja autenticidade seria, de resto, nos casos de “sofrimento intolerável” a que se refere a Lei aprovada, sempre questionável). A vida é inviolável mesmo com o consentimento da vítima. Por isso, sempre têm sido puníveis o homicídio a pedido e o auxílio ao suicídio. A orientação dos tribunais constitucionais alemão e austríaco encontra nesta afirmação absoluta um sério obstáculo.
Numa audição relativa à discussão dos projetos que estão na base da Lei entretanto aprovada, ouvi uma deputada sustentar que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição portuguesa é apenas a da vida de quem quer viver, não a de quem lhe quer pôr termo. Mas isso seria acrescentar, arbitrariamente, à formulação desse princípio constitucional um limite e uma reserva que dele não constam, nem explicita nem implicitamente.
A Constituição portuguesa confere à vida humana uma proteção ainda mais forte do que se reconhecesse (como fazem a generalidade das Constituições) apenas o direito subjetivo à vida e não também um princípio objetivo de inviolabilidade da vida. Isto, porque poderia ser eventualmente questionável (embora não necessariamente) a irrenunciabilidade e indisponibilidade desse direito. Com a formulação desse princípio objetivo, não pode haver dúvidas de que o direito à vida é irrenunciável e indisponível.
Compreende-se que o princípio da inviolabilidade da vida encabece o catálogo constitucional dos direitos fundamentais, pois a vida é o pressuposto de todos os direitos. Atentar contra a vida é destruir a fonte e a raiz de quaisquer direitos. Não tem sentido contrapor a inviolabilidade da vida humana aos direitos e princípios constitucionais de liberdade e autonomia individuais, como se estes sobre ela pudessem prevalecer, precisamente porque a vida é o pressuposto desses direitos. A vida é o pressuposto de todos os bens e direitos e, portanto, também da liberdade. Só é livre quem está vivo. Pôr termo à vida é pôr termo à liberdade (podemos dizer que é o “suicídio da liberdade”).
Também não se respeita a liberdade quando se legaliza o consumo e tráfico de droga, porque a toxicodependência afeta gravemente a própria liberdade. Tal como não teria sentido invocar a liberdade para justificar a escravidão consentida.
Também não tem sentido invocar o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade”, consagrado explicitamente na Constituição alemã e reconhecido pela jurisprudência de vários países. A morte não pode, obviamente, corresponder a algum “desenvolvimento da personalidade”, é a cessação de qualquer “desenvolvimento da personalidade”.
Por outro lado, como também se afirma nessa carta aberta da Associação dos Juristas Católicos ao Presidente da República, a Lei recentemente aprovada pelo Parlamento português viola os princípios da dignidade humana (artigo 1º da Constituição) e da igualdade (artigo 13.º desse diploma). Da conjugação desses princípios decorre que todas as vidas, em todas as situações e em todas as suas fases, são igualmente dignas. A dignidade da vida nunca se perde. Não há vidas indignas de ser vividas. Não há vidas que por qualquer motivo deixem de merecer proteção. Ora, a aprovada legalização da eutanásia e do suicídio assistido parte da ideia de que há vidas que deixariam de merecer proteção porque são marcadas pela doença e pelo sofrimento. Essas vidas deixariam de merecer proteção porque estariam desprovidas da dignidade que é própria de quaisquer outras vidas (as quais continuariam a merecer proteção).
Dir-se-á que se trata de combater esse sofrimento. Mas a eutanásia e o suicídio assistido não eliminam o sofrimento, eliminam a vida da pessoa que sofre. A resposta à doença e ao sofrimento não pode ser a morte provocada. Há de ser o acesso aos cuidados paliativos (dos quais, de resto, ainda estão privados muitos portugueses, com o que também é violado o princípio da igualdade).
Estes os motivos por que a Lei, há dias aprovada, que autoriza a eutanásia e o suicídio assistido, viola a Constituição portuguesa. Neste mesmo sentido, pronunciaram-se José Souto de Moura, no artigo “Dignidade humana, natureza humana, eutanásia“, e Inês Quadros, no artigo “Dignidade e liberdade, ou o que a eutanásia não é“.
Justifica-se, assim, que o Presidente da República solicite, como lhe é sugerido pela Associação dos Juristas Católicos, a fiscalização preventiva da constitucionalidade dessa Lei.