Sou a informar que estou do lado do PS, e dos seus apoiantes, neste caso das calúnias que vêm das pessoas más e beras que não querem bem ao nosso formidável governo e que o atacam vilmente só porque metade das pessoas que trabalham no governo são familiares próximos de quatro sétimos da outra metade. Esta é uma boa ocorrência e que, em boa verdade, até dá élan ao país.
Dou um exemplo. O que seria a história da China contemporânea sem o pedaço que vos vou contar de seguida? De que outra forma tentaria Portugal competir no divertimento das gerações vindouras em se tratando de imbróglios familiares governativos?
Primeiro, um bocadinho de contexto. Na China maoista os familiares dos altos quadros do Partido Comunista Chinês também tinham todos cargos catitas na administração do país. Nos meses antes do início da Revolução Cultural, Mao e amigos purgaram umas tantas pessoas ligadas ao então chefe dos militares. Um desses oficiais purgados era casado com uma senhora que escreveu umas cartas anónimas sobre Ye Qun, a mulher de Lin Biao (que convenientemente veio a ser o novo chefe dos militares), dizendo que esta era de virtude fácil e Lin Biao ‘corno’ (perdoem o meu francês, mas simplesmente reproduzo).
Ora como era acusação grave, a matéria foi investigada, o casal purgado foi acusado de ‘elementos contrarrevolucionários’, evidentemente presos e organizou-se uma sessão do Politburo para ouvir a autocrítica do marido. Nessa sessão, Lin Biao, numa bonita demonstração de amor à mulher e de respeito pelas instituições burocráticas chinesas, deixou uma cópia manuscrita da seguinte mensagem nas cadeiras de cada membro do Politburo (traduzo de Roderick Macfarquhar):
‘Eu certifico que 1) quando ela e eu casámos, Ye Qun era uma virgem pura e ela permaneceu fiel desde então; 2) Ye Qun e Wang Shiwei [um escritor entretanto executado] nunca foram amantes; 3) Laohu e Doudou são filhos da minha carne e de Ye Qun; e 4) a carta contrarrevolucionária de Yan Weibing [a acusadora de Ye Qun] não contem nada se não rumores. Lin Biao, 14 de maio de 1966.’
Estão a ver? É certo que já tivemos um comunicado ridículo do nosso presidente falando da sua família toda, mas ainda não tivemos Eduardo Cabrita no Conselho de Ministros a defender a virgindade aquando do casório de Ana Paula Vitorino, nem Mariana Vieira da Silva garantindo por escrito que o seu pai é um socialista moderno que lhe mudava as fraldas quando era bebé nunca esquecia dos cremes para evitas as assaduras. Os nossos governantes têm, portanto, amplo espaço para se embaraçarem muito mais, de modo a conseguirmos competir sem pejo com a China maoista.
Não vale muito a pena argumentar dos malefícios destes tentáculos familiares todos, que qualquer pessoa que aprecie decência democrática entende questões de conflitos de interesse e de ligações e lealdades que estão acima da vontade de procura do bem comum que qualquer pessoa que trabalhe num governo deve possuir.
Mas vale a pena, claro, ilustrar aquelas pessoas sempre prontas a abandalharem a qualidade da democracia em se tratando de defender a sua tribo. Também há à direita, nem é preciso referir, e vejo muita gente embevecida com Trump e Bolsonaro indignada (os anjinhos) com o nepotismo no PS.
Mas não é que umas almas geniais nos vieram caridosamente explicar que não há qualquer problema dos maridos e mulheres e filhos e pais e irmãos e amas de leite, porque a endogamia existe em toda a sociedade? A inevitável Estrela Serrano, que nunca desiste de nos fazer revirar os olhos de incredulidade, lembrou até que no conselho de administração da Impresa estão pai e filhos. Outros, também com obrigação de terem juízo e pudor, referiram que jornalistas casavam entre si. (E os professores também, os advogados a mesma coisa, e por aí fora.)
É uma prática frequente do PS – e, de resto, dos produtos políticos tóxicos que por aí andam. Pretenderem virar para a comunicação social o escrutínio que deve estar voltado para o poder político. Negarem sonsamente e desonestamente que há uma diferença abissal entre o mundo privado – cheio de leis e regulamentações e inspetores de finanças e da ASAE e tudo – e a gestão da coisa pública. Que quem gere dinheiro dos contribuintes tem obrigações de transparência e de prestar contas e explicações, enquanto quem está noutros setores tem somente que se justificar aos acionistas da empresa ou aos seus utentes ou consumidores.
E que dizer de António Costa? Depois de acusar Cavaco Silva de ter tido governos com promiscuidades entre setor público e setor privado – que o PS está isento disso, Manuel Pinho, Pina Moura e Jorge Coelho nunca existiram, são alucinações coletivas de que sofremos – vai a correr aprovar uma lei (de mãos dadas com o PSD, qual Thelma e Louise perante o abismo) que continua a promiscuidade entre os grandes escritórios de advogados e o setor financeiro e empresarial.
O cidadão mais insuspeito dá por si disposto a votar em toda a gente que consiga eleger deputados, incluindo no PCP e no BE, se for necessário para impedir, venha outubro, uma maioria absoluta do PS.