1. Com os numerosos casos de mulheres assassinadas por companheiros ou ex companheiros, neste ano, soube-se que a maioria das vítimas já tinha apresentado queixa de violência doméstica pelo seu futuro assassino. A resposta das polícias e dos organismos públicos, como é infelizmente evidente, falhou a proteger estas mulheres.
Falhou ou, se calhar, não quis ou não achou uma boa alocação de recursos protege-las. Veja-se por exemplo este caso – por esta vez um tribunal de recurso fez boa figura – de uma mulher que acionou o botão de pânico depois de uma discussão com o ex (de quem tinha apresentado queixa de violência doméstica, algo que, claro, potencia ainda mais e maior violência e obrigaria as polícias a reforços de proteção) num centro comercial.
Como é hábito por cá, assume-se que as mulheres são mentirosas e inventam agressões (e violações e outras coisas). Enquanto as mulheres não forem assassinadas ou não ficarem severamente incapacitadas, bem, vamos assumir que não há perigo nenhum, que é só histeria dos seus cérebros instáveis. Depois, claro, umas tantas morrem de assassínios preveníveis, mas o que queriam? Que a polícia andasse a perder tempo protegendo mulheres que se calhar até são umas harpias que davam cabo do juízo do marido? Algumas até os enganaram, ou os trocaram por outros, pelo que merecem bem umas pantufadas.
Uma mulher assustada por uma discussão com um homem de quem já apresentara queixa? O que fazer perante isto? O óbvio: a polícia fica agoniada, apresenta queixa, o ministério público em vez de arquivar de imediato gasta recursos dos contribuintes a elaborar uma acusação a esta mulher, vai a tribunal pedir uma condenação e há uma juíza que condena.
Não há muitos comentários para este caso. Talvez que a proteção às vítimas de violência doméstica é uma fantochada – que atravessa as polícias, o MP e os tribunais. Que quem devia saber que a precaução neste caso é essencial – as três instâncias da frase anterior – resolver gastar tempo e recursos dos contribuintes a punir uma mulher que tinha todo o direito a proteção quando a pediu. Até para o agressor saber que, em sendo chamada, a polícia acorria. Que as ditas três instâncias precisam de formação urgente em tudo o que envolve violência contra mulheres.
No outro dia, em conversa com Sandra Pereira, do PSD, a deputada dizia-me que a sociedade desvalorizava este tipo de violência, e que as polícias e os tribunais refletiam essa desvalorização. É mesmo assim. Também deve ser por se considerarem demasiado importantes para casos que envolvem violência sobre meras mulheres (em vez de casos sumarentos de fraudes ou de evasão fiscal) que os magistrados do Ministério Público não querem investigar casos de violência doméstica, deixando-os para os colegas mais novos, mais inexperientes e mais propensos a fazerem uma acusação deficitária.
Afinal há mais outro comentário. A segurança dos cidadãos e a dispensa da justiça, funções primordiais de qualquer estado, convêm existir para as mulheres antes de serem assassinadas.
2. Informaram-me que um António Pedro Barreiro, dos setores integristas da JP (produto de uma jota: surpresa!), me citava no Observador, a propósito deste texto na Capital Magazine sobre o incêndio de Notre Dame. Diz da minha querida pessoa: ‘perante a catástrofe, quiseram contribuir para a destruição da Notre-Dame, negando a sua identidade de edifício religioso católico’. Mais crimes: ‘Maria João Marques decidiu que a Notre-Dame era (apenas) “um símbolo europeu” e que não pertencia àquilo que define como “clubismo cristão”.’
Bom, tentando economia de resposta à parvoíce, falsidade e incapacidade de ler e entender textos, de Barreiro, que não se sabe se vêm da imaturidade, da pomposidade ou de tendência para falsear, aqui vão uns pontos. Necessários, já que Barreiro se torna um bom exemplo do que é esta nova direita trauliteira. Os ataques políticos são o fim último da sua atividade, recorrendo alegremente a mentiras e ataques pessoais. O desprezo pela verdade é assombroso. Não conseguem aquilatar uma mensagem para além do mensageiro.
Um. Barreiro escreve falsidades. Em lado nenhum nego o caráter religioso de Notre Dame, o que seria uma tontice. As pessoas com literacia normal, em lendo catedral gótica, sabem tratar-se, bem, de uma catedral (explico a Barreiro: onde está a cátedra do bispo; quiçá mais habituado a usar catedral na gíria futebolística?) Digo que é um símbolo europeu, sim, e falsamente Barreiro acrescenta um ‘apenas’ entre parêntesis que nada no texto lhe permite inferir. Os adultos costumam saber que a mesma realidade pode ser simultaneamente várias coisas.
À frente, o arguto Barreiro afirma que mostro ‘um profundo desprezo pela identidade histórica da Notre-Dame’ (persignem-se, horrorizados, s.f.f.), apesar de eu ligar a catedral à história de França e da Europa. Se Barreiro não entende frases explícitas, não admira que não perceba que qualquer texto existe dentro do contexto (exterior ao texto). No caso, o conhecimento, por qualquer pessoa com proficiência histórica mínima, das raízes judaico-cristãs que perpassam toda a história europeia. Talvez me deva penitenciar: de facto não escrevo assumindo a ignorância dos meus leitores; é que a maioria não são Barreiros.
Dois. Sintomático não entender que o ‘clubismo cristão’ – grupo identitário político entretido em guerras culturais – não tem nada a ver com cristianismo. Fascinante (e ai a hipocrisia) falsear num texto, de estilo beato, onde até citações bíblicas coloca.
O resto é a minha opinião e espiritualidade. E a descrição de um estado de coisas, goste-se ou não: as grandes catedrais góticas são atrações turísticas, desde logo pela necessidade de fundos para manutenção (eu preferia-as em silêncio só para mim). Discorde – interessa-me zero – mas não falseie, tanta a vontade de me visar.
Podia ter-se gerado um debate bom. Se as ruínas não podem ser um símbolo cristão mais poderoso que a atração turística. Se a reconstrução deve ou não conter os elementos da destruição – como a Igreja de São Domingos em Lisboa. Se Deus está só presente no sacrário das igrejas ou se tudo o que é belo tem presença de Deus. Os rebuliços políticos e burocráticos para restaurar uma catedral. Mas são debates demasiado profundos e bonitos para tão modesto interlocutor.