Se deves mil, o problema é teu, se deves centenas de milhões o problema é dos contribuintes, dos governos, do Banco de Portugal e, eventualmente, dos gestores da banca. Se deveres centenas de milhões e ainda fores presidente de um clube de futebol como o Benfica podes até conseguir ter na comissão de honra o primeiro-ministro e presidente da câmara da capital do país. Esta é a frase adaptada ao Portugal do século XXI. São assim as nossas elites que, podemos concluir sem errarmos muito, nos tratam com total desprezo de povão a quem nem bacalhau basta. É muito difícil, nestes tempos, manter a frieza que combate os populismos.

O presidente do Benfica Luís Filipe Vieira está agora no olho do furacão, depois de o primeiro-ministro António Costa e o presidente da Câmara de Lisboa Fernando Medina terem aceitado integrar a sua comissão de honra para a recandidatura. Mas já estiveram aí Joe Berardo e um pouco menos Nuno Vasconcelos e Rafael Mora da Ongoing. As notícias dão-nos invariavelmente conta dos milhões que os bancos já perderam com estes devedores, sem que uma única vez tenha sido noticiada qualquer investigação sobre o que fizeram ao dinheiro, um processo que fosse de falência fraudulenta.

O grupo Promovalor de Luís Filipe Vieira era, já em 2014, o segundo maior devedor do BES. De acordo com o ETTRIC (Exercício transversal de revisão das imparidades dos créditos concedidos a certos grupos económicos) devia mais de 400 milhões de euros. O primeiro devedor era o GES com mais de mil milhões de euros.

Esta dívida da Promovalor quase duplicou em quatro anos, soubemos agora. Em finais de 2018, revela o Correio da Manhã, o grupo Promovalor devia 760,3 milhões de euros ao Novo Banco e gerou perdas de 225,1 milhões de euros. Mas repare-se que em Janeiro de 2018 o Expresso noticiava que o Novo Banco tinha reestruturado a dívida da Promovalor, que nesta altura ainda se mantinha em 400 milhões de euros. A reestruturação, citando o Expresso, passou por entregar a Nuno Gaioso Ribeiro, da Valor Criativo e também vice-presidente do Benfica, “os melhores activos da Promovalor para que os explore e rentabilize no prazo de cinco anos”, tendo o Novo Banco “recebido em troca um reforço de garantias”. A Capital Criativo tem também como accionista Tiago Vieira, filho de Luís Filipe Vieira.

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O ano de 2018, como se viu, acabou com uma dívida que é quase o dobro. Ainda de acordo com a notícia do Correio da Manhã que aqui está resumida, o Fundo de Resolução recomendou ao Novo Banco que se fizesse uma auditoria à concessão e reestruturação da dívida da Promovalor, mas não se sabe se tal foi realizado.

Como se isto não bastasse, para o primeiro-ministro e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa pensarem duas vezes antes de entrarem para a comissão de honra, Luís Filipe Vieira é arguido na Operação Lex por suspeitas de alegada prática do crime de tráfico de influência. E de acordo com as últimas notícias, poderá ser acusado. Como é que o primeiro-ministro e o presidente da Câmara de Lisboa se envolvem com uma personalidade a braços com a justiça e com a banca só pode ser incompreensível.

A Ongoing é outro dos casos em que é um mistério a forma como a banca tem tratado o caso. Ex-accionista da PT, ex-dona do Diário Económico, tendo deixado dívidas também aos seus trabalhadores, os seus accionistas Nuno Vasconcellos e Rafael Mora não têm qualquer problema em continuar a sua vida, expondo sinais de excelente saúde financeira.

Em Maio de 2019, a revista Sábado foi ver como estavam alguns dos devedores importantes da banca. Sobre a Ongoing, revela que Nuno Vasconcellos vive em São Paulo, está ligado a pelo menos 13 empresas e é visto a conduzir um Porsche. Em 2016, com os trabalhadores do Diário Económico com salários em atraso, deu-se ao luxo de colocar nas redes sociais fotografias suas enquanto preparava um lombo de salmão. Rafael Mora é mais discreto nas páginas dos jornais, mas não se coíbe igualmente de viver sem problemas.

De acordo com os dados citados pela Sábado, a Ongoing deixou dívidas estimadas em 1200 milhões de euros à banca, ao Estado e aos trabalhadores. No exercício ETTRIC, já citado, feito pelo Banco de Portugal com dados de 2013, a Ongoing devia à banca pouco mais de 500 milhões de euros, 179,5 milhões dos quais ao BES/Novo Banco e 316,5 milhões ao BCP. Em Julho de 2020 descobre-se que afinal a dívida ao Novo Banco era de 600 milhões de euros, de acordo com uma notícia do Correio da Manhã e aqui sintetizada pelo Observador.

O BCP só encontrou uma mota de água no património de Nuno Vasconcellos quando o quis penhorar por dívidas pessoais. E o que queria fazer o Novo Banco com essa dívida de 600 milhões de euros da Ongoing? Vendê-la por dois milhões de euros. Mais uma vez foi o Fundo de Resolução que não o permitiu.

Joe Berardo é outro dos casos que gerou enormes paixões e grande activismo, neste caso da CGD, tendo, entretanto, caído no esquecimento. Percebeu-se na altura que foram sucessivas renegociações da sua dívida na CGD que tornaram a dívida cada vez mais incobrável. E no processo de execução de dívidas, a CGD encontrou, não uma mota de água, mas uma garagem.
O que fez de errado Berardo na Comissão parlamentar de Inquérito da CGD, em Maio de 2019, que gerou tanta comoção? Disse a verdade, o que todos os outros grandes devedores poderiam ter dito. Disse que não devia nada a ninguém, as empresas é que devem. E riu-se na cara dos deputados e de todos nós. Lê-se no Observador: “…Mas se os bancos executarem a penhora deixa de mandar, ou não? ‘Eles que o façam… AH, AH, AH…’, riu-se Berardo.”

A risada de Berardo pode ser a de todos os grandes devedores, que pertenciam à elite ou continuam a pertencer, que contam com o apoio da honra do primeiro-ministro, que se dão ao luxo de exibir sinais de riqueza sem que nada lhes aconteça apesar de terem deixado um rastro de destruição. Podem rir a bom rir de um Estado que é suposto ser de Direito e não consegue cobrar nem um tostão do que devem.

Desgraçados são os portugueses em geral e as empresas que tiveram de continuar a sua vida e tudo fizeram para sobreviver e pagar aos bancos. E mais desgraçados ainda todos nós que assistimos a um País em que os governos, os deputados e a justiça permitem que os rentistas sejam premiados.
Os gestores dos bancos, os governos, os deputados e a justiça têm explicações para tudo aquilo a que assistimos. É melhor assim do que perder o dinheiro todo, dizem os gestores da banca. É a solução menos má, dirão os governos. Não temos maioria, dirá cada um dos partidos. Não temos a lei do nosso lado, dirá a justiça. Ao fundo ouve-se a risada dos rentistas que conseguiram o dinheiro dos bancos, não pagaram e dizem que só têm motas de água.

Nota: o Observador recebeu um direito de resposta a este artigo.