Ontem, um dos partidos que viabilizou o último orçamento do governo de António Costa organizou em Lisboa uma manifestação a favor da ditadura comunista cubana. A surpresa, aqui, está em não haver surpresa. Do Partido Comunista Português, que continua a chorar uma das tiranias mais repugnantes do século XX, não esperaríamos outra coisa. Mas de resto, sim, deveríamos talvez estranhar: como é que um governo democrático pode depender dos votos de partidos como o PCP ou o BE? O PCP e os grupos políticos que formaram o BE tentaram, em 1975, impedir a instituição em Portugal de uma democracia de tipo ocidental. Hoje, não se limitam a admirar ditaduras como a de Cuba, que, com a censura, a proibição de outros partidos que não o comunista ou a interdição à saída livre do país, negam tudo aquilo em que a democracia portuguesa assenta. Continuam a propor a estatização da economia — um sistema que em nenhum tempo ou lugar foi compatível com a liberdade e o pluralismo político. Não nos deveríamos inquietar?

A sabedoria vigente diz-nos que não. Que isso são fantasmas da Guerra Fria, sem sentido agora. Já não há União Soviética. A China continua sob o domínio de um partido comunista, mas está mais empenhada em vender e comprar coisas do que em promover revoluções. Sim, é verdade que o muro caiu em 1989. Mas deixem-me dizer uma coisa: se a Guerra Fria acabou, o pós-Guerra Fria também já acabou, e por isso não podemos continuar a tratar ditaduras como a cubana ou partidos como o PCP e o BE como simples curiosidades de museu, outrora virulentas, agora benignas. O mundo mudou em 1989, mas, desde então, já mudou outra vez — e, infelizmente, a favor desses regimes e desses movimentos.

Nos anos a seguir a 1989, correu a ideia de que os conflitos ideológicos haviam terminado. Era o “fim da história”. A economia de mercado parecia consensual, e a “globalização” ia servir para ocidentalizar o resto do mundo. Houve até quem deixasse de ver sentido na dicotomia esquerda-direita. Foi o tempo do “centro reformista” de Bill Clinton e Tony Blair. Em determinada altura, para arranjar algum motivo de preocupação, houve que recorrer ao “choque de civilizações”. Acontece que as coisas são hoje diferentes.

Primeiro, foi o terrorismo islâmico e a guerra do Iraque, em 2003. Depois, a crise financeira, em 2008. A seguir, o descontrole das migrações na América Central e no Mediterrâneo, em 2015. Tudo isso confrontou os governos ocidentais com opções que acabaram por desfazer os aparentes consensos do pós-Guerra Fria. A promoção internacional da democracia, muito popular nos anos 1990, passou a ser tema de polémica. A globalização, também. Com o Brexit, em 2016, a integração europeia, de irresistível, como parecia no fim do século XX, tornou-se reversível. No mundo, ditaduras velhas e novas provaram que não era só o tipo de democracia ocidental que tinha futuro. Discussões que pareciam resolvidas foram reabertas. Contra a economia de mercado, voltou a falar-se de “socialismo”; contra o “politicamente correcto”, voltou a invocar-se a tradição e a natureza. O leque partidário das democracias ocidentais alargou-se. Partidos improváveis, como o Syriza na Grécia ou a Liga na Itália, nomearam primeiros-ministros. Mas os partidos estabelecidos contribuíram tanto como os outros para a nova polarização política.

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A transformação da esquerda dita “moderada” pode servir de exemplo. Em determinada altura, os partidos da esquerda moderada viram-se derrotados em eleições que, segundo a sabedoria aceite, deveriam ter ganho. Em 2015, António Costa não venceu o “governo da troika”; em 2016, Hillary Clinton perdeu para os “deploráveis”; no mesmo ano, Pedro Sánchez falhou ao tentar substituir Mariano Rajoy. Em aflição, todos recorreram ao mesmo expediente: agarraram-se à extrema-esquerda. Os socialistas portugueses pactuaram com o PCP, o BE e o PAN; os Democratas americanos perfilharam muitas das ideias dos partidários de Bernie Sanders; os socialistas espanhóis apoiaram-se no Podemos e acabaram por o levar para o governo. Previsivelmente, tudo foi ainda interpretado do ponto de vista do consenso dos anos 1990. Imaginou-se que o PS, os Democratas ou o PSOE tinham finalmente “integrado” e “neutralizado” a extrema-esquerda. Não foi bem assim. Para começar, a extrema-esquerda não mudou de ideias: o PCP faz manifestações de aplauso à ditadura cubana, regime pelo qual Bernie Sanders não esconde a sua afeição, e que o Podemos continua a negar seja uma “ditadura”. De facto, foram as as ideias extremistas que passaram a ter um novo eco na esquerda dita moderada. Em 2017, o actual candidato do PS à Câmara Municipal do Porto resolveu derreter-se em entusiasmo pela revolução soviética que cem anos antes derrubou a república democrática russa e instaurou uma das ditaduras mais sanguinárias do século XX: era “património das esquerdas”.

Há aqui obviamente uma diferença entre a esquerda e a direita. A direita democrática nunca considerou que a tomada do poder por Hitler em 1933 fizesse parte do seu “património”. No entanto, os partidos da direita democrática são constantemente forçados pelas esquerdas a prestar contas pelo “fascismo”. É mais um sinal de como a cultura de intolerância típica dos comunistas, para quem qualquer adversário é um “fascista”, alastrou hoje a toda a esquerda.

A indiferença perante o comunismo é uma distracção pouco inteligente. Por vezes, é mesmo causa de sofrimento, como nessa magnífica exibição de indecência que foi a recusa do governo de Biden de receber como refugiados os cubanos que tentem escapar à repressão comunista. Noutros tempos, o Ocidente teve como política acolher todos os fugitivos das ditaduras comunistas. Foi essa política que, entre Setembro e Novembro de 1989, acabou por provocar a queda do muro em Berlim, depois de o êxodo de alemães de leste através da Checoslováquia e da Hungria se ter tornado imparável. Essa política nunca devia ter acabado, porque a contradição entre o comunismo e a democracia liberal não acabou. Sim, o comunismo continua entre nós e continua a prender e a matar. Sim, a visão comunista do mundo é hoje partilhada como já não acontecia há muitos anos, contaminando a vida pública com o seu maniqueísmo sórdido. Não acreditem que tudo acabou com a Guerra Fria. Nunca o anti-comunismo fez tanto sentido.