Por receio à direita e excitação à esquerda, não se falou de outra coisa nos últimos três anos. Um pouco como a criança que muda de casa pela primeira vez depois do divórcio dos pais, Portugal entusiasmou-se com a novidade da ‘geringonça’. António Costa, com a sua humildade característica, proclamou o «derrubar de um muro» – não deixando de ser irónico que o verdadeiro Muro tenha sido derrubado por óbito daqueles a quem Costa estendeu a mão. Mas não falemos de História, continuemos na situação.
A direita temia – e a desconfiança dos mercados em 2016 justificava-o – uma aliança entre o PS e os partidos populistas. A esquerda regozijava-se com a suposta «maturidade democrática» e com um alegado «fim da austeridade», sendo ambos mitos de duração já prescrita. A «maturidade democrática» acabou na infantilidade parlamentar de quem critica os Orçamentos que aprova. O «fim da austeridade» acabou com Mário Centeno a dirigir a maior carga fiscal e a maior dose de cativações do passado recente do regime. Mas não falemos de História, continuemos na situação.
Por mais simbólica que a criação da ‘geringonça’ possa ser, por mais português que seja o gosto que o eleitorado lhe tomou – porque é tão bom dizermo-nos de esquerda sem estarmos em bancarrota –, as suas consequências no sistema político não são tão claras quanto os holofotes que lhe apontam. O PS não deixou de defender a pertença à União Europeia, até porque preside ao Eurogrupo, ou a pertença à NATO. Não se deram nacionalizações, reversões estruturais ou renegociações de dívida. O objetivo financeiro prosseguiu um: o défice. A bandeira económica é a mesma: as exportações.
Mas não falemos de História, continuemos na situação.
Nestes últimos três anos, entretivemo-nos a interpretar os significados cósmicos da solução de governo. Foi «um golpe de génio» (de um derrotado eleitoral) e «uma revolução» (de um partido não revolucionário). Eu, lamento, não alinho no fascínio. Hoje, a diferença do Partido Socialista face a 2011 não são as caras, o garrote mediático ou o projeto de poder. Não é sequer a dita ‘geringonça’. O que mudou no PS foi a sua assumpção total da responsabilidade orçamental. Foi António Costa, esta semana, não hesitar em considerar que baixar o IVA na energia «não é comportável». Foi Mário Centeno defender que é preciso «prevenir para futuro», como Passos avisou desde que saiu de São Bento. Foram os deputados do PS que não querem «repetir os erros» de 2010. [Margarida Marques, ex-secretária de Estado, 14/4/18].
Mais do que qualquer arranjinho parlamentar com gente de pouca coerência, esta consciencialização socialista para o rigor nas contas públicas – esta universalização do sonho «défice zero» – é uma mudança significativa no paradigma partidário. E as suas consequências afectam a direita de um modo mais letal do que o folclore ideológico anexo ao Bloco de Esquerda e ao PCP. Afectam a direita porque acabam com a divisão de PS e PSD entre partido distribuidor e partido bom gestor. Porque exigem à direita que seja mais do que um remendo para asneiras socialistas. E será ela capaz disso? Sem reconhecer os efeitos de um PS aparentemente responsável no sistema político, não creio.
Em 2019, como em 2015, valerá a máxima de Lampedusa: algo tem de mudar para tudo ficar na mesma. Costa, que não terá lido o livro, viu bem o filme. Mas não falemos de História. Continuemos na situação.