O tratado de Rapallo, concluído secretamente em 1922 pela Alemanha e a União Soviética – dois estados párias no pós-Primeira Grande Guerra – ocupa um lugar de destaque entre os golpes diplomáticos surpresa. Durante o século XX o “espectro de Rapallo” tornou-se a palavra-senha para o perigo de a Alemanha regressar à colaboração com a Rússia, em detrimento dos interesses dos seus aliados ocidentais. Um século depois, a atração oriental da Alemanha voltou à ordem do dia, com a política de prioridade das relações económicas da Alemanha com a Rússia e a China a marcarem o fim da era Merkel.
Um Rapallo das vacinas, em embolo de gasoduto?
As últimas semanas foram reveladoras. Enquanto a Chanceler Merkel se ia contagiando com o fracasso do processo de contratação das vacinas pela Comissão Europeia e com o crescente impopular lockdown, a sua protegida na Comissão Europeia, Ursula Van der Leyen, incendiava pontes com a Grã-Bretanha durante a disputa sobre o fornecimento da vacina da Astra Zeneca à União. A reação da Chanceler denunciou as suas prioridades. Aproveitando o inesperado sucesso da vacina Sputnik V, declarada pela revista Lancet como tendo uma eficácia de 95%, Merkel ofereceu a Putin a produção da vacina russa na Alemanha, enquanto se multiplicavam dúvidas sobre a eficácia da vacina britânica.
Para além da evidência de que o pragmatismo não abandonará Merkel, no background está a disputa entre Berlim e Washington pela conclusão do gasoduto Nord Stream 2. Por enquanto, a estratégia de Merkel parece estar a cooptar o Presidente Joe Biden para um cessar-fogo diplomático, mas a deterioração das relações entre Berlim e Washington é visível.
Os sinais que vêm de Washington sugerem que, a médio prazo, a nova Administração não permitirá à Alemanha manter simultaneamente uma estratégia económica, focada em preservar o seu considerável excedente comercial – que decorre das relações económicas com a Rússia e a China – e a sua dependência dos Estados Unidos como garantes da sua segurança na NATO. A Administração Biden renovou as sanções que Donald Trump tinha adotado contra o Nord Stream 2, porque quer “reforçar a independência energética da Europa”. O Secretário de Estado americano, Anthony Blinken, também deixou claro nas suas audições de confirmação que o gasoduto continuará a ser uma questão crucial nas relações EUA-UE.
A política externa da Chanceler é também crescentemente divisiva na Europa. O Presidente Macron veio recentemente pronunciar-se contra o Nord Stream 2 e tem-se comprometido mais abertamente com a nova Administração americana. Os países Bálticos e a Polónia parecem agora mais confiantes em Paris do que em Berlim. Em Londres, agora que o Brexit está concluído, as tensões entre Biden e Merkel são vistas como oportunidade de se substituírem a Berlim como o principal parceiro estratégico de Washington na Europa. Apesar disto, por enquanto o espectro de Rapallo continua a ser habilmente manobrado pela Chanceler em sua vantagem. Aos seus sucessores caberá gerir esta ambígua herança.
Madalena Meyer Resende (no twitter: @ResendeMeyer) é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.
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