Viviam-se então os tempos eufóricos da recém-proclamada independência angolana. Sacudido o jugo colonial, depois de uma dolorosa guerra de libertação, a que se seguiria uma ainda mais penosa contenda civil, era de esperar, por parte de todos os cidadãos do novo Estado independente, uma compreensiva hostilidade para com a potência colonial, tendo em conta que a propaganda política dos triunfantes movimentos de libertação, de inspiração marxista, ia também nesse sentido. Afinal, Portugal era, para todos os efeitos nacionalistas, o inimigo a vencer.
Foi por essa altura, pouco depois da proclamação da independência de Angola, que um diplomata português, em serviço na nossa embaixada em Luanda, foi mandado parar por um polícia de trânsito local, que o inquiriu nestes termos:
– O senhor é angolano ou estrangeiro?
Sendo português, a resposta era evidente:
– Sou estrangeiro.
– Mas estrangeiro de onde? – voltou a interrogar o agente da autoridade.
– De Portugal.
– Então – retorquiu o polícia, com a impaciência de quem está a dizer uma coisa demasiadamente óbvia – não é estrangeiro, é português!
O episódio é significativo do que era evidente, mesmo para um agente da autoridade nos tempos de exaltação nacionalista da então recém-estreada independência daquela ex-colónia portuguesa: um português não é um estrangeiro em Angola!
Talvez alguns pensem que este episódio, que me foi contado pelo protagonista, releva algum neocolonialismo, ou um anacrónico saudosismo imperialista. Talvez. Mas, a verdade é que estive agora uma semana em Luanda e, mais uma vez – já lá tinha estado em outras ocasiões, em anos recentes – nunca me senti estrangeiro, embora respeite escrupulosamente, como não podia deixar de ser, a independência da grande nação angolana.
Na verdade, sinto-me mais estrangeiro na vizinha Espanha, não obstante a proximidade ibérica, as afinidades existentes entre as culturas peninsulares e o paralelismo das nossas histórias respectivas. É verdade que Angola é um país estruturalmente diferente de Portugal, nomeadamente pela sua matriz africana e pela sua cultura ancestral, que pouco ou nada tem a ver com as tradições europeias em geral, em que se inserem, como é natural, os usos e costumes portugueses.
Embora reconheça que a presença portuguesa em terras africanas foi historicamente muito positiva, sempre me pareceu exagerada a afirmação de que Angola, ou Timor, eram tão portugueses como o Minho, ou a Beira. De facto, historicamente, o Minho e a Beira são portugueses desde que há Portugal, enquanto Angola e Timor só passaram a estar integrados no Estado português depois da sua descoberta e ocupação, aliás bastante relativa, também devido à distância e exiguidade da população portuguesa. Neste particular, a política colonial britânica sempre foi mais realista, pois nunca pretendeu que os territórios ultramarinos fossem Inglaterra, Gales ou a Escócia, embora fossem possessões do império britânico.
Diga-se de passagem, a propósito da recente polémica em relação à criação de um eventual museu dos descobrimentos, das descobertas, ou do que seja, que, mais importante do que levantar um monumento ao passado, certamente glorioso, de Portugal, interessa apoiar os países de expressão oficial portuguesa, com políticas que, sem paternalismos bacocos e no maior respeito pela sua autonomia e independência, reforcem a sua relação connosco, nomeadamente através da língua comum.
Sempre houve, em Portugal, pessoas muito atreitas a delírios de grandeza: quando o país estava prestes a colapsar economicamente e a bancarrota era iminente, o discurso do então governo era sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, a construção do TGV, a nova ponte sobre o Tejo e outras obras públicas faraónicas! Não sei se existe, ou não, algum património susceptível de ser exposto num eventual museu das descobertas mas, mesmo que existam peças expressivas da expansão portuguesa pelo mundo que mereçam um tal enquadramento museológico, é mais urgente ajudar os países de língua oficial portuguesa no que respeita à justiça social, à democracia representativa e ao reconhecimento dos direitos humanos.
Em Luanda, não só tive a honra e o prazer de me encontrar com o Padre Dr. José Vicente Cacuchi, reitor da Universidade Católica de Angola, cuja sede está em Luanda, como também de visitar demoradamente uma escola portuguesa que pratica um ensino de excelência: o Colégio São Francisco de Assis. Também tive o privilégio de participar numa sessão em que convivi com umas duas centenas de professores de um conjunto de escolas católicas que, na capital de Angola, têm a seu cargo cerca de doze mil alunos. No seminário maior da arquidiocese de Angola, frequentado por cerca de duzentos e cinquenta seminaristas, encontrei uma muito promissora juventude, ávida de formação humana, científica, teológica e espiritual.
Angola é nossa, não porque seja de Portugal, que generosamente deu ao mundo esse novo mundo e, por isso, já o não tem. É nossa porque é da nossa língua, como nossa é, também, para os católicos, porque esta é a sua fé maioritária. Aliás, a Igreja católica é a instituição de mais prestígio no país, porque é também a mais empenhada na justiça social, no desenvolvimento e na paz. Já a expansão portuguesa fora sobretudo missionária: por isso, as caravelas não levavam nas suas velas as armas nacionais, mas a cruz de Cristo.
Que a jovem Angola, tão cheia de vida e de força, se lembre sempre da velha metrópole, de onde partiram os que lhe ensinaram a língua que hoje falam os seus habitantes! Que não lhe guarde rancor, mas honre a sua antiguidade, segundo a salutar tradição africana do respeito pelos mais velhos. Que mantenha sempre viva a fé, que não é portuguesa, mas católica, ou seja universal, para que o anúncio do amor, que é comunhão, promova a reconciliação entre todos os angolanos e o perdão necessário à unidade da grande pátria angolana.