Ódio à América, ao Ocidente e às democracias liberais, obsessão com a eterna e universal culpa do homem branco ocidental, recusa em aceitar que foram presidentes americanos e republicanos (Reagan e Bush) que ganharam a Guerra Fria, e intelectuais sempre e necessariamente desalinhados. A agressão russa à Ucrânia tem reunido um conjunto heterodoxo: apoiantes de Putin, dos direitos da Rússia a dominar os países vizinhos, fetichistas do velho comunismo, extremistas de direita com o mesmo apreço que Putin pela democracia e a liberdade, e teóricos da irremediável perfídia norte-americana. Todos concordam que a responsabilidade do que se passa na Ucrânia é da NATO, dos americanos, do Ocidente. Todos têm em comum detestar mais a América e a ideia de Ocidente do que outra coisa qualquer, enquanto vivem nas confortáveis e seguras democracias ocidentais.
As teses em torno da responsabilidade ocidental pelo ataque de Moscovo variam, mas são essencialmente três e coincidem numa ideia: a Rússia tem direito a uma esfera de influência e pode recusar a perigosa ameaça da democracia ocidental nas suas fronteiras. Tudo o resto são falsos argumentos que escondem esta convicção fundamental.
Primeiro argumento, a NATO tinha prometido não alargar para Leste e acabou por trair essa promessa feita aos russos, depois da queda do Muro de Berlim. Deixando de lado a discussão sobre a natureza desse compromisso, o facto de a Rússia, entretanto, não se ter tornado numa democracia, de ser um regime autoritário que apoia outros regimes autoritários, de assassinar inimigos à luz do dia em capitais europeias ou de liderar ataques cibernéticos a democracias ocidentais não os impressiona. O problema foi o alargamento da NATO (e da União Europeia, que não referem mas fez parte da mesma dinâmica de democratização e liberalização).
Segundo argumento, a História da Rússia legitima a restauração de uma grande Rússia, casa de toda a comunidade russófona, dentro (e eventualmente fora) das fronteiras do Império soviético. O facto de este argumento autorizar uma futura reocupação da Estónia, Letónia e Lituânia, demonstrando, por essa via, que a sua adesão à NATO foi um acto de sobrevivência, não os impressiona, também. Nem o facto de a Finlândia agora discutir, incluindo à esquerda, a possibilidade de decidir aderir à NATO, por uma questão de segurança. Deviam todos ter ficado sossegados, e admitir a possibilidade de regressar ao domínio russo para não humilhar o imperialismo soviético nem ofender a Mãe Rússia. Se tivessem ouvido alguns políticos dos estados bálticos quando chegaram à União Europeia, em 2004, e explicaram que a Rússia de Putin era tão ou mais ameaçadora que a União Soviética, perceberiam melhor o que se está a passar.
Por último, o argumento nazi. São todos fascistas e nazis. A história da população da Letónia, que saiu à rua para celebrar a chegada das tropas alemãs, em Junho de 1941, podia ajudar a perceber que a opressão soviética era tal que os tanques alemães foram confundidos com tropas libertadoras. Mas preferem imaginar uma reencarnação neonazi, para glorificar a luta anti-fascista do líder russo. (Sem prejuízo de sabermos que a Leste nunca faltaram anti-semitas, só que a questão não essa.)
O facto de haver comunistas (mais em Portugal do que noutros países da Europa) que descobrem em Putin uma espécie de reencarnação das lideranças soviéticas é estranho mas não inteiramente descabido. Putin não se reclama comunista, mas apresenta-se como herdeiro e candidato à reconstrução do Império Soviético. Para quem cresceu e vive na fé de que a URSS era o paraíso na terra, qualquer reencarnação é bem-vinda. Sobretudo se retomar a batalha contra as democracias ocidentais e o capitalismo. Isso é o bastante para este apoio aparentemente injustificado. Não é só a aliança típica entre inimigos dos meus inimigos. É mais que isso. São, no essencial, as mesmas ideias: um poder autoritário, um estado central musculado, a recusa da democracia burguesa. Para esta coligação, por mais surpreendente que possa parecer, há uma boa explicação. O mais bizarro é o resto, os supostos democratas. Alguns são irmãos gémeos dos pacifistas ocidentais do século passado. Uns tontinhos, outros nem por isso.
Nos últimos dias o Presidente Joe Biden e a sua administração esforçaram-se para tornar visível e inaceitável o ataque russo à Ucrânia. Houve, evidentemente, informação e contra-informação, propaganda, pressão mediática. Como tinha de haver. Caso contrário, esta ameaça seria tão tolerada como foi o ataque de 2008 à Geórgia, a ocupação da Crimeia, em 2014, e o “separatismo” ucraniano no mesmo ano.
Há duas maneiras absolutamente distintas de olhar para o que se está a passar na Ucrânia. Pode-se acreditar que é o exercício de um direito russo, mas então não se pode fazer de conta que se defende a democracia ou a liberdade. Ou pode-se reconhecer que o Ocidente cometeu, e comete, erros, mas não se pode fazer de conta que o nosso modelo e os alternativos são equivalentes e que há quem não o possa ter. E, já agora, isso tanto vale para a Rússia como para a China.