Há uns anos, a Comissão Europeia emendou um texto nas vésperas de ser publicado. Onde estava crescimento passava a estar crescimento e emprego. Tudo o resto no documento ficava igual. Ontem, fez mais ou menos a mesma coisa. A Comissão, e sobretudo quem interpretou o que a Comissão ontem publicou, declarou o fim da austeridade e da redução abrupta dos défices anunciando que, se a proposta for aprovada pelos governos, de futuro haverá uma arquitectura da governação da zona euro mais transparente, simples e integrada. O que muda, alguma coisa. O que não muda, tudo. A começar pelo mercado. Em vez de austeridade, leia-se então flexibilidade e controlo orçamental.

A proposta da Comissão Europeia, que agora os ministros das Finanças hão-de discutir e os governos depois aprovar, ou não, traz de facto algumas novidades. Em vez de objectivos gerais e iguais para todos, planos definidos Estado a Estado para a redução do déficit, e objectivos menos rápidos. Importa mais o sentido do que a velocidade da redução do déficit e da despesa excessiva. Mas os limites inscritos no Tratado mantêm-se. Além disso, a par de maior apropriação pelos Estados membros dos planos nacionais, também haverá mais obrigações claras em matéria de reformas e de fiscalização dos desequilíbrios orçamentais.

Dizer que nada mudará, se a proposta da Comissão Europeia, ou uma semelhante, for aprovada é injusto e errado. Há aqui várias alterações. Dizer que a austeridade acabou, é spin. Propaganda, diríamos em Portugal.

O que a proposta da Comissão Europeia tenta fazer, de facto, é criar um enquadramento novo para a regras e processos de cumprimento das obrigações europeias. Sem alterar as obrigações nacionais em matéria de dívida pública, déficit e orçamentos, alteram-se sobretudo os processos. Pode ser mais devagar que se atingem os resultados (que se caminha nessa direcção), será mais adaptado à realidade nacional, mas será mais partilhado com as autoridades europeias e com os restantes Estados. Mais flexibilidade com maior controlo externo, resumindo muito.

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A discussão sobre estas ideias vai evidentemente dar que falar, mas o facto de parte ter origem numa proposta comum de Espanha e dos Países Baixos é um bom tiro de partida. Mas isso não resolve tudo.

Um dos aspectos mais sublinhados pela Comissão Europeia e pelos jornalistas e comentadores em Bruxelas é que estas propostas resultam do que se aprendeu com as gestão das anteriores crises, nomeadamente a necessidade de ter políticas orçamentais anti-cíclicas. E o exemplo mais usado é o que se fez na resposta económica ao Covid. O problema deste teoria está no que não se diz.

Não foi a Comissão Europeia que chamou a Troika à Grécia e a Portugal, em virtude do incumprimento das regras orçamentais inscritas no Tratado e no Pacto de Estabilidade e Crescimento. Foram os mercados que subiram de tal forma os juros das respectivas dívidas soberanas que estes países não tiveram alternativa se não pedir emprestado a quem pudesse. Em troca, os credores exigiram cumprimento de regras para se assegurarem de que seriam pagos. Se as regras impostas eram as boas ou não, é outra conversa. Mas a necessidade de pedir ajuda não foi por causa das regras, foi por causa dos mercados. E do que se tinha feito antes, claro.

O outro erro é ignorar que a Alemanha, o exemplo frequentemente dado, só gastou o que gastou na resposta ao Covid (e ameaça gastar muitíssimo mais que os outros na resposta ao efeito do aumento dos preços da energia) porque podia e pode. Porque tinha dinheiro nos cofres e margem para pedir emprestado mais. E os restantes países, como Grécia, Portugal ou Itália, só puderam responder como responderam porque a União Europeia se endividou em conjunto, conseguindo para todos uma taxa de juro muito melhor do que a que estes países pagariam. E, ainda assim, muitos (como Portugal) só foram buscar o dinheiro dado. Não quiseram, ou não puderam, querer mais dívida.

Sem se dizer estas duas coisas, que as Troikas não foram chamadas por causa das regras mas sim por causa da falta de confiança dos mercados e que alguns Estados depois só puderam gastar porque a União Europeia se endividou a mais baixo custo, não se conta a história toda. Nem se percebe o que muda agora.

Mais do que acabar uma suposta aplicação cega das regras – que só se pode dizer que aconteceu aos países resgatados –, passando a haver planos e programas mais flexíveis e adaptados, mudará também quem vigia quem. Para conseguir fazer passar esta flexibilização, os países com melhor performance orçamental exigem e exigirão maior controlo dos que incumprem as regras.

Resumidamente, e como se começou há dez anos, se uns dizem que a moeda única exige mais transferências orçamentais (e paciência com os desvios), os outros insistem que isso só é possível se puderem controlar mais como se gasta. E ainda faltará ouvir o que os mercados depois dirão.

Tudo isto é razoável, expectável e discutível. O que não é desejável é que se diga que as obrigações acabaram, ou que o dinheiro agora já não acaba.