Ontem revi Pina, o filme de Wim Wenders, de 2011. É um filme que é uma homenagem. Como todas as homenagens sentidas é exagerada, acrítica, comovente. É a fatia do meio da torradinha. Nem côdea nem arestas. É tudo o que uma homenagem deve ser. É uma declaração de amor. É serviço público. E são depoimentos de bailarinos intercalados com excertos das peças de dança que Pina Bausch coreografou. Estão em cena no palco e em cena na vida, quer dizer, na rua, em Wuppertal onde Pina viveu e trabalhou. De uma circularidade clássica, começa como acaba, com a Marcha das Estações, quatro movimentos tão simples para as representar, gestos tão fáceis que os fazemos juntos a partir do sofá da sala. Entre o início e o fim do filme, por entre essa sequência de abertura e de fecho, espreitamos. E vemo-nos na nossa mais clara humanidade.

Nossa. Humanidade.

Parece que estou a escrever sobre um filme cujo tema é a dança e uma das prodigiosas coreógrafas do século XX. Mas talvez esteja, de facto, a escrever sobre o cancelamento, a apropriação cultural e a liberdade.

Liberdade.

Pina, de Wim Wenders, é exemplar disto que a democracia é. Desde os elementos mais simples aos mais sofisticados. Alguém quer saber de que cor são os bailarinos? A etnia? O género? A orientação sexual? A religião? É irrelevante. Interessa saber quão bem representam o ideal estético e técnico de Pina. Quão bem se adequam. Porque a questão em Pina, como na arte e na cultura, é inteiramente outra. É sobre a matéria comum. O que nos define e une.

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Nossa. Humanidade. Liberdade. União. Arte. Cultura.

Fokine, russo, numa carta de 1904 dirigida aos directores do Mariinsky, escreveu: «a dança tem com o gesto a relação que a poesia tem com a prosa. A dança é a poesia do movimento». Ele queria que esse movimento partisse a uniformidade sintáctica que o sujeitava, despisse o fato de mimo, fosse único e adequado, sempre reinventado ao que de novo pretendia expressar e parte integrante da música e da realidade encenada. Em cada peça. E o resto faz parte da história da dança que é também a nossa história.

Comer, cantar, dançar em conjunto é da nossa natureza. Basta ver que ainda hoje, transculturalmente, celebramos assim os momentos que sinalizam passagens na nossa vida e nos nossos calendários religiosos ou laicos. E também é deste modo, em pequenina escala, que se reúnem amigos, família, amantes. E é em conjunto que nos despedimos da vida dos que amamos – apesar desta não ser uma característica apenas humana. Ou só dos mamíferos. Os pássaros fazem-no e nasceram de um ovo.

Que tem a alemã Pina a ver com o russo Fokine? Tem Kurt Jooss. Da mesma forma que Fokine, Joss, mestre de Pina Bausch e co-fundador da Escola Folkwag, em Essen, escola de teatro, música e dança onde ela estudou, entendia que a dança não era uma disciplina, mas uma interdisciplina. Jooss não tinha a formação técnica de Fokine, não era um bailarino dessa grandeza. E não teria a cultura musical e artística de Fokine. Para além disso, mais de uma geração os separava e todo um passado de diferenças.

Nossa. Humanidade. Liberdade. União. Arte. Cultura. História.

Fokine veio da Rússia Imperial para a Revolução Russa e depois de encontrar Diaghilev e deslumbrar Paris com os Ballets Russes, levantou o novo paradigma da dança clássica do século XX que reverberou nas artes. Ainda hoje o ouro e o marfim que nos sobram nos palcos são dessa rota do pensamento. Não nos esqueçamos que Fokine, repito, russo, colaborou na criação da cultura americana: que bailarinos lá havia? Nenhuns. Mas havia coristas. Em Nova Iorque, foi para a Broadway e de lá contaminou o cinema – de onde vieram as meninas em pontas e penas nas Ziegfeld Follies? E porque não havia bailarinos teve de criar o American Ballet – escola incluída. As pessoas iam ver. Chegaram a ser afastadas pela polícia aos milhares. Histeria e notícia de jornal qual concerto de Beyoncé. A arte faz parte de nós tal como o desejo de transcendência. Somos impactados e inspirados pela beleza.  As pessoas queriam dança nem que fosse um baile de cadeira, na assistência. Apropriação total.

Jooss, vinte e um anos mais novo que Fokine, logo com menos regras para quebrar, estava em trânsito também, porém entre diferentes impérios: do Austro-Húngaro para o Terceiro Reich. É natural, portanto, que a dança numa Europa central sucessivamente pulverizada e por isso dominada pelo expressionismo, se tenha divorciado pelo litigioso do ballet clássico. Então, que fez Jooss? Situou-se em palco e ocupou-o inteiramente: entre a expressão dramática e o texto trazidos do teatro, a música, a concepção de movimento corporal e de movimento no espaço de Laban e a memória residual do ballet clássico, mostrou-nos as nossas próprias entranhas. Quando rimos e quando choramos e quando somos indiferentes. E o efeito no mundo em nós.

Pina não excluiu as sobras da herança malquerida da dança clássica. Escolheu dela as partes que quis como as crianças fazem quando pedem no café uma torrada e preferem a parte do meio e trocam connosco os cantos por mais pedacinhos do meio. Apropriou-se. Tomou para si. E fez coisas belas e terríveis, em simultâneo, enquanto nos expunha, não as entranhas, mas o coração.

Nossa. Humanidade. Liberdade. União. Arte. Cultura. História. Coração.

A autora escreve segundo a antiga ortografia