Não conheço um único poeta vivo – bem, não exactamente. Dos meus poetas mortos não conheci um que fosse. Nem Ramos Rosa, nem Manuel António Pina, nem Ruy Belo. Já Herberto Helder nunca o quis conhecer. Gostava demasiado da poesia dele para contemplar a possibilidade de a beliscar com a realidade. Dos romancistas, só conversei com Agustina num longo sonho de fazer inveja ao Matrix depois do comprimido tomado. Nem o cadeirão de orelhas assente em efémero branco me faltou ao sonho – tinha dezanove anos e foi tão real aquela ficção que até hoje a tomo por verdadeira e juro por ela. Também sonhei um poema com uma enorme pintura de Paula Rego, e escrevi-o, detalhei bem aquela bonecada toda, acho que lhe chamei O Guardador de Patos, e foi um momento de absoluta lucidez, horrível também, como só a verdade sabe ser.

No início da minha adolescência, a Biblioteca Municipal e a da Gulbenkian funcionavam num claustro que também cumpria funções de Museu. Ia no Verão. À torreira do calor quando o sol a pique lambe até o ângulo recto das casas e pelos passeios não há a sombra de uma sombra. Nem todos os livros se podiam levar para casa e uma pessoa tinha de ler de empreitada e copiar os poemas ainda com a letra redondinha da infância que não se despega nunca, nem quando a caligrafia se faz de electrocardiograma e já somos crescidos. Por mim, comprava aqueles livros e mais sei lá quantos, um exemplar de cada, de tudo quanto houvesse sobre a terra, para fazer uma habitável biblioteca infinita onde casa e rua e praia fossem o mesmo caminho de estantes, percorridas a pé ou de bicicleta. Não sabia, então, que Eugénio de Andrade estava no Porto. Mas sabia que os meus catorze anos queriam vê-lo de carne e osso como os meus quinze queriam conversar com David Mourão-Ferreira que descobri por acidente num livro de António Ferro, e os meus dezoito todos os dias juravam a si mesmos, os mentirosos, que amanhã, sem falta, iriam ter com Yvette Centeno, de Musaeum Hermeticum e cinco mil dúvidas debaixo do braço.

E havia a questão dos maridos. As minhas colegas tinham posters, Duran Duran e outras bandas, conheciam os seus integrantes pelo nome próprio. Eram fãs. Eu não tinha posters. Tinha maridos. Entre os mortos era uma poligamia às claras encabeçada, sempre e até hoje, por Eça. O pior foi o dia em que vi um dos meus maridos na Feira do Livro, já em Lisboa, vivo, a dar à caneta. Uma roda de gente, mais que na praça, ao fim-de-semana. E eu, surpreendida pelo marido levantado dos mortos, de coração na boca, fugi logo, não sei se do susto de um putativo fantasma dar autógrafos, se por ver exposta a poligamia, ou do medo de lhe falar e ficar com cara de dois de paus.

Só queria aprender a escrever com os meus maridos… Fosse por esforço, osmose ou milagre, tanto fazia.

Não conheço poetas nem escritores, nem críticos literários, nem pintores. Quero dizer, conheço. Até o avesso lhes conheço, virei-os e revirei-os letra a letra. Gosto de me lembrar deles. Gosto de lhes agradecer.

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