Há uma coisa que é igualzinha nos motivos atribuídos aos votantes em Donald Trump e naqueles que transparecem nos escritos dos seus críticos mais extremos (isto é, quase todos): a convicção de que Trump se define única e exclusivamente pela sua personalidade e que as suas posições políticas não são senão uma projecção, volátil e sem espessura própria, dessa mesma personalidade, admirável para os primeiros e desprezível para os segundos. Daí que os artigos de jornal e a florescente indústria americana de livros sobre Trump entrem, na sua generalidade, na categoria da psicologia ou da psiquiatria, segundo o gosto ou inclinação do autor. Não é por acaso que a palavra “pesadelo” é tantas vezes usada. Para os críticos radicais, Trump encontra-se na directa descendência de Freddy Krueger, destruindo o “sonho americano” que nunca tiveram, nem adolescentes nem adultos.
Sou o primeiro a reconhecer que o próprio Trump sempre se prestou a alimentar essa percepção, quanto mais não seja por um instinto que lhe permitiu sobreviver num universo político e mediático que lhe era inteiramente adverso, mesmo perdendo, como previsivelmente acontecerá, estas últimas eleições. Se bem que – é preciso repeti-lo – com uma votação excepcional, sem nada a ver com aquilo que as sondagens, uma vez mais, diziam. É, no entanto, permitido discordar desta doutrina psicologizante ou psiquiatrizante, que pessoalmente nunca comprei, e levar a sério um núcleo de convicções que lhe são próprias e que não se reduzem à sua personalidade nem sequer ao modo como exprimem a forma de sentir as coisas de sensivelmente metade dos americanos. Infelizmente, apenas um número limitado de jornais – o Wall Street Journal, o Figaro ou o Daily Telegraph, por exemplo – prestou atenção a essas convicções, o que, de resto, mostra como a maioria, ignorando voluntariamente este aspecto, organizou meticulosamente a substância do seu pesadelo, com todos os adereços cinematográficos possíveis.
Outros poderão falar de economia ou de política internacional. A mim interessa-me aqui mais aquilo que, tanto quanto consigo perceber, Trump pensa sobre a tomada do poder, primeiro universitário e depois mediático e político, pela actual esquerda americana (com poucas relações com a velha esquerda, mesmo a dos anos sessenta e setenta, com a qual, para o bem e para o mal, à distância cresci), uma esquerda que, como é natural, tende a tornar-se na nova esquerda mundial. Como de costume, é mais fácil definir as coisas negativamente, dando a ver oposições — e é o que vou fazer. Mais: vou fazê-lo indicando por alíneas alguns aspectos da oposição, sem particular preocupação de ordem.
Eis aquilo que mereceu, durante estes anos, a oposição de Trump:
- Uma cultura que fomenta o medo de dizer o que se pensa. Não se trata apenas de um código destinado a impedir a expressão daquilo que é ofensivo e difamatório na nossa linguagem ou no nosso comportamento, mesmo à custa de uma certa hipocrisia destinada a preservar as aparências. A hipocrisia – como modo de ocultarmos aos outros, com o auxílio de uma máscara, alguns dos nossos pensamentos mais íntimos – tem um valor civilizacional e diminui os riscos da violência. Aristóteles, La Rochefoucauld, Kant, e até Shakespeare (Assume a virtue if you have it not, diz Hamlet à sua mãe) o mostraram de uma maneira ou de outra. Aqui, agora, a coisa tem uma dimensão mais funda. Não se trata apenas de interditar a expressão de certos pensamentos: trata-se de interditar os próprios pensamentos, algo que não era permitido sequer ao Soberano de Hobbes. É o totalitarismo possível na cultura contemporânea.
- A tese do chamado racismo sistémico ou estrutural. Um manto de culpa é lançado sobre todo e qualquer indivíduo pertencente ao grupo maioritário (branco) da sociedade. Por mais notória que seja a não emissão de propósitos racistas por parte de quem quer que seja, o racismo é suposto, por definição, estar sempre lá, e a não admissão do racismo é a mais eloquente das suas expressões. Uma senhora socióloga, Robin DiAngelo, construiu a sua reputação (e produziu um bestseller) com a sustentação desta tese, que tem o efeito paradoxal de absolver os verdadeiros racistas de qualquer pecado que lhes seja próprio, dissolvendo-os na necessidade do todo social.
- A presentificação do passado, por via de uma identificação do presente com este. O passado (esclavagista, por exemplo) é vivido integralmente, de corpo e alma, no interior do nosso próprio ser, como uma mancha nunca eliminável que nos é consubstancial. É esta abolição de toda a distância entre o presente e o passado que permite a destruição de estátuas por esse mundo fora e a concomitante cultura de cancelamento que na universidade, na rua e nos museus, promove a maldição a que são votadas figuras como David Hume, Darwin ou Churchill, entre muitas outras.
- A defesa da violência exercida por grupos que têm a sorte de estar “do lado certo da história”, se é que ainda existe história neste mundo em que toda a distância entre o passado e o presente foi obliterada. Black Lives Matter, Antifas e Extinction Rebellion aparecem, como por magia, inocentados de qualquer violência que pratiquem ou de qualquer intimidação que lhes apeteça levar a cabo, como, por exemplo, aquela que membros do Extinction Rebellion tentaram sobre o meu velho amigo Sir David Attenborough. Em contrapartida, a polícia é maciçamente encarada como uma entidade não só opressiva como criminosa, que, nas vozes mais radicais, deve ser desmantelada.
- A censura em nome do Bem. Com efeito, do Facebook e do Twitter aos tradicionais órgãos de comunicação, a censura adquiriu recentemente um prestígio que em tudo contraria o opróbrio em que saudavelmente foi tida desde há muito. Não é exagero dizer que há algo em tudo isto que faz lembrar a atitude face às blasfémias do fundamentalismo islâmico. Por razões civilizacionais, a radicalidade do ódio à blasfémia (paradoxalmente metamorfoseada em crítica do “discurso de ódio”) não encontra aqui os prolongamentos práticos que encontra no islamismo, mas, dada a dimensão que as coisas tomam, não excluo a possibilidade de um tal desenvolvimento, por mais remoto que possa parecer.
Poderia, como é bom de ver, continuar com muitos outros exemplos. A configuração das nossas sociedades actuais oferece-os em grande número. Mas não vale a pena, num artigo de jornal, continuar, até porque uma enumeração mais extensa implicaria uma investigação sobre a génese desta atitude mental contemporânea, para a qual obviamente não tenho aqui espaço. A única coisa que queria sublinhar é que, por relação a esta matéria (como em relação a muitos aspectos da economia e da política internacional), Trump conta com muitos pontos a seu favor. É verosímil que estivesse destinado a ser derrotado neste capítulo, tal a aparente inexorabilidade do movimento que conduz as nossas sociedades numa direcção oposta àquela que defendeu, do mesmo modo que a sua verosímil derrota eleitoral, a sua morte política, se encontrava possivelmente prevista já no instinto que lhe permitiu sobreviver na mais hostil das atmosferas. Não é a primeira vez que tal contradição se manifesta e não será de certeza a última. Resta que, no ponto que toquei, ele teve razão. E receio bem que a extrema-esquerda dos democratas, por tudo aquilo que é ubiquamente palpável, tudo faça para seguir e radicalizar o ar do tempo. Notar-se-á que não falo de pesadelos. Os pesadelos são privados.