Sempre pensei que o Liberalismo assentava (entre outros) no pressuposto de que as pessoas, em última análise, eram racionais e responsáveis. Claro que as emoções, as paixões, a aflição, o desespero abrem grandes intervalos nesse meu suposto estado de fundamental lucidez. Mas, passadas essas perturbações, acabaríamos todos, ou quase todos, por ser chamados à razão. Não no sentido de reconhecer a Verdade, um exercício mais apropriado para filósofos ou teólogos, mas de se admitir a evidência dos factos duros e retirar deles, racionalmente, logicamente, as ilações que se impõem. A nossa vida, tal como a História, está cheia de momentos de irracionalidade. Mas, tudo somado, olhando retrospectivamente, prevalece em geral um padrão coerente e inteligível. E mesmo os disparates, no caso de indivíduos, e as tragédias, no caso da História, são em última análise susceptíveis de um escrutínio e explicação racionais.

Com excepções, contudo, como acontece nas situações radicalmente absurdas. A minha crença nos mencionados pressupostos do Liberalismo foi logo abalada durante o ominoso consulado de José Sócrates, quando Portugal se assemelhava a um automóvel a acelerar com toda a força contra um paredão. E mais abalada ficou quando acordámos para a realidade de que a Dívida privada (de empresas e particulares) superava a gigantesca Dívida Pública. Era “o tempo das duas casas e das três auto-estradas” (R. Ramos). Se as três auto-estradas acabaram por ser levadas a crédito da irresponsabilidade do nosso governante, a culpa das duas casas foi, e continua a ser, atribuída à malícia dos Bancos e aos efeitos nefastos do euro, que graças aos baixos juros permitia viver folgadamente da dívida. Responsabilidade pessoal ? Não houve. Somos um país de crianças grandes inimputáveis.

O Syriza justifica as suas fanfarronadas com os votos democráticos e soberanos que recebeu do povo grego (mais os 50 deputados que a absurda lei eleitoral oferece de borla ao partido mais votado). A crise humanitária pela qual a Grécia efectivamente está a passar, causada pelo tratamento draconiano que recebeu da Troika, foi precedida pelo predomínio incontestado de duas dinastias de políticos corruptos que durante décadas saquearam o país, acabando por obrigar a mendigar ajuda externa para evitar, por um fio, a bancarrota.

Ora, enquanto os Karamanlis (falecido em 1998) e os Papandreous arruinavam o país, os gregos colaboravam alegremente: poderiam ter corrido com eles com um voto tão democrático e soberano como deram agora ao Syriza, até votando massivamente nulo ou em branco se não entrevissem alternativa credível. Porém, nenhum grego estranhava os extraordinários privilégios de que gozava e de que nem os cidadãos das nações mais ricas da Europa usufruíam. Não só: em lado nenhum da Europa a evasão fiscal era tão sistemática e escandalosa, praticada de cima abaixo da escala social. Enquanto a fartura durou, toda a gente colaborou no saque do país e beneficiou dele, ao mesmo tempo que o enterrava descontraidamente. A revolta e o fervor patriótico só irromperam quando, subitamente, os gregos se viram confrontados com a duríssima realidade. Não, os gregos não elegeram o Syriza por causa da Europa, do BCE ou da Troika, elegeram o Syriza porque este lhes prometeu ressuscitar o sonho de fadas em que se tinham habituado a viver, poupando-os à realidade e devolvendo-lhes a irresponsabilidade em que descansadamente viviam e dormiam. Pessoalmente, não me sinto inclinada a contribuir com os meus “cortes” e impostos para financiar a negligência e o desmazelo da Grécia.

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Do Syriza, convertido em bezerro de ouro da esquerda, a Europa ainda só recebeu, até agora, arrogância e provocação, uma estratégia estúpida cuja pretensa esperteza não escapa a ninguém. A filáucia de Varoufakis, ministro grego das Finanças, destina-se a testar os limites da condescendência europeia; a dispensa da gravata pelo primeiro-ministro Tsipras não passa de uma demonstração infantil de irreverência e rebeldia; a aliança com um partido de direita anti-europeu foi mais um desafio desnecessário; o apoio manifestado à agressão criminosa da Rússia na Ucrânia ou é sincera e por isso lamentável, ou não passa de mais uma farronca pseudo-nacionalista que renega os deveres de um país-membro da NATO; a elevação do salário mínimo para 720 euros constitui uma afronta para os muitos e muitos europeus excluídos de uma tal benesse; a readmissão nos quadros da Função Pública de 600 (!) empregadas para limpar o ministério das Finanças inscreve-se na mesma política de esbanjamento que antes da Troika mantinha 27 jardineiros (!) entretidos a fingir que cuidavam de um jardim com um hectare. A listagem dos casos mais escandalosos pode ser lida no artigo de Sousa Tavares no Expresso de sábado, 31 de Janeiro (embora o colunista retire conclusões opostas às minhas).

Há quem veja no “caso grego” uma oportunidade para forçar a Europa a flexibilizar as suas regras e políticas. Mas a Grécia não quer uma mera flexibilização, quer, com 10 milhões de habitantes e os cofres vazios, ditar ela as regras e políticas de uma União que alberga cerca de 500 milhões de pessoas. Ocorre-me o ditado – entradas de leão, saídas de cão. Esperemos apesar de tudo, por razões meramente humanitárias, que a Europa não queira, e possa não querer, transformar o caso grego numa “vacina” contra a veleidade de acreditar no Pai Natal. Não tardará que tenhamos a oportunidade de confirmar se ele afinal existe ou não realmente.

Há quem diga, como MST, que uma “capitulação” da Grécia forçada por Berlim detonaria na Europa uma onda de ódio anti-germânico e a ebulição das frustrações em relação a Bruxelas; e que neste caso se poderá antever a próxima dissolução da UE. Pode ser. É um facto que o ódio e a frustração já existem, mas não acredito que se agravassem. Mas, dada a despropositada arrogância de um país falido cujos principais problemas não começaram sequer a ser resolvidos apesar de dois resgates e um mais que generoso perdão de metade da Dívida; dadas as provocações com que o Syriza entendeu por bem desafiar aqueles de quem precisa, o problema, o dilacerante problema a que chegámos está em que desapareceu qualquer espaço para uma negociação em que ninguém perca a face. Graças ao gabado talento político de Tsipras, a Europa está colocada perante o dilema entre deixar cair a Grécia ou sofrer uma miserável humilhação. E neste segundo caso teríamos, não a tal onda de ódio, mas uma onda de reivindicações e exigências dos países em dificuldades que, a serem satisfeitas, igualmente preludiariam o fim da Europa num futuro muito próximo. No ponto em que o Syriza colocou as coisas, uma das partes terá fatalmente de capitular – ou a Grécia terá de sair da Europa pelo seu pé. Talvez a Rússia, a título de mais um passo na renovada Guerra Fria, lhe sirva de amparo.

Se a Europa se rendesse à chantagem, como se contornaria o precedente grego? O que justificaria a excepção de um tratamento privilegiado? Com o exemplo seminal de Péricles e da Democracia Ateniense? Mas Péricles e a Democracia Ateniense estão tão longe dos gregos e da Grécia actual como nós estamos dos Incas ou dos Astecas dizimados por Cortês e Pizarro. Mas ainda que o simbolismo tivesse cabimento, teríamos de concluir que os gregos não honraram a herança que receberam.

A UE, ao longo da sua formação, acumulou erros sobre erros. A perspectiva de uma federalização parece-me completamente utópica. Ignoro se há outras opções a explorar. O certo é que foi construída em comum, e em comum se deve reformar, se reforma tiver. O que não pode é alterar regras ao sabor de ultimatos vindos de alguém que, por ora, não passa de um aventureiro com pretensões e ambições absurdas, daquelas que escapam a um entendimento racional. Mas isto já é outro assunto.