A directora. Portugal é um caso único no mundo. Nos outros países os governantes empenham-se em desmentir que fizeram isto ou aquilo (Boris Johnson todas as semanas cumpre mais um patamar desse calvário). Pois por aqui é precisamente ao contrário: os nossos governantes têm de se esforçar para nos convencer que aquilo que dizem ou fazem é mesmo verdade. A frase “Sim, é mesmo verdade!” faz agora parte das nossas vidas. Mal nos convencemos que afinal é verdade algo que segundo os até então nossos parâmetros jamais toleraríamos, logo outra verdade nos põe à prova. Esta semana, ainda mal refeitos da constatação de que sim, é mesmo verdade que o Presidente da República anda por aí a beijar barrigas de grávidas, tivemos de admitir que sim, é mesmo verdade que temos uma directora-geral da saúde cujas intervenções públicas estão ao nível das rubricas didácticas do Poupas na Rua Sésamo.
Ao contrário do que afirmou o primeiro-ministro os portugueses não são cépticos. Pelo contrário são duma crendice que impressiona: afinal acreditam e querem acreditar de tal forma nos seus dirigentes que perante as imagens e declarações que provam o total desrazoamento e mediocridade desses mesmos dirigentes, reagem os crentes portugueses descrendo automaticamente da realidade. Mas para nossa desgraça é tudo verdade.
A decepção. Costa “dececionado” com decisão do Supremo dos EUA sobre direito ao aborto. Primeiro-ministro diz que sempre defendeu “que não se podem criminalizar questões da consciência política, religiosa e ética“. Nem mais! Costa está decepcionado com o Supremo dos EUA que segundo afirma “abre caminho à ilegalização do aborto”. Já mostrar-se decepcionado com o seu governo que está a impedir o acesso aos cuidados de saúde durante o parto fica para depois. E note-se que motivos para decepção não lhe faltam. Só neste fim-de-semana o Hospital de Braga fecha a urgência de obstetrícia; o Centro Hospitalar de Torres Vedras não deve ter condições para receber utentes na urgência de Pediatria até às 9h00 de domingo. No Algarve, as grávidas referenciadas para Portimão vão ser desviadas para Faro até segunda-feira enquanto as crianças vão de Faro para Portimão… Mas valha-nos o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que reabriu a urgência ontem, sábado, e o Supremo do EUA que trouxe à cena o mundo como deve ser: republicanos maus versus democratas bons. A somar a esta divisão temos agora um Supremo super-vilão. É com decepções destas, longínquas e maniqueístas, que iludimos os nossos falhanços.
Mas vamos ao aborto. Por razões que remontam a um caso com meio século, o direito ao aborto era consagrado pelo Supremo dos EUA “até à viabilidade do feto” ou seja até às 23 semanas de gravidez. Ora hoje quatro em cada 10 bebés nascidos com 23 semanas de gestação sobrevive. E foi quando o estado do Mississipi resolveu adaptar os prazos legais da interrupção de gravidez à realidade do século XXI aprovando em 2018 uma lei que proibia o aborto a partir das 15 semanas, que se iniciou o processo que agora acabou no Supremo.
Há em toda esta polémica um tom de contrassenso: quando se pensava que a generalização da contracepção ia tornar o aborto algo excepcional eis que aí o temos como grande tema como se tivéssemos feito uma viagem no tempo. Quando se esperava (ou esperava eu quando defendi a descriminalização do aborto) que a descriminalização levasse a que as interrupções acontecessem mais cedo eis que pelo contrário se alargam os prazos. Em países como a Colômbia passou-se quase directamente da criminalização para a legalização até às 24 semanas: o Tribunal Constitucional da Colômbia ao contrário do Supremo dos EUA entendeu que tinha competências para decidir nesta matéria dispensando os eleitores mas mediaticamente falando o Supremo dos EUA está contra a democracia e o Tribunal Constitucional da Colômbia a favor. Paulatinamente passámos da descriminalização do aborto para a afirmação do direito ao aborto como se se tratasse de mais um direito humano e não de uma opção que devendo ser possível deve ser excepcional.
Entendamo-nos o Supremo dos EUA não proibiu o aborto, pelo contrário entendeu que não devia legislar sobre o aborto e devolveu aos eleitores de cada estado o direito de decidirem sobre esta matéria. Alguns irão proibi-lo completamente (do que discordo). Outros permiti-lo em tempos de gestação que podem ir das seis às quinze semanas. Outros até às 24. Deste lado de cá do Atlântico as discussões são por agora outras. Menos mediáticas, menos democráticas mas igualmente importantes: em vários países procura-se cercear o direito à objecção de consciência no caso do aborto por parte de médicos e enfermeiros. O Parlamento Europeu aborda regularmente o assunto. Mas nós vamo-nos entretendo com o Supremo dos EUA. É mais fácil e dá mais emoção.
A bruxa. A mulher vai a descer as escadas ladeada por vários polícias. De repente parece tropeçar. Depois levanta-se e segue. A multidão grita. Há dias que ela é “a bruxa” ou mais concretamente uma das pessoas suspeita de ter sequestrado e maltratado Jessica. Os jornais enchem-se com detalhes sobre a vida da mãe da criança assassinada. Também sabemos dos homens com que se relacionou. Sabemos muito menos sobre “a bruxa”. Há contudo um elemento patente nas fotografias e em algumas declarações de terceiros que não se escreve nem pronuncia mas se sugere: o facto de a mulher que é apresentada como bruxa ser cigana. Ou mais exactamente parecê-lo. O dicionário duplo actualmente em vigor para falar dos ciganos é de um paternalismo insustentável: se for para dar conta da exclusão na escola ou no acesso a qualquer serviço insiste-se na necessidade de dar visibilidade aos ciganos. Já se os mesmos ciganos praticarem crimes essa sua identificação é omitida sob risco de acusação de racismo. Outras vezes sugere-se essa identificação através de designações como clan (como sucede nas notícias sobre a angariação em Portugal de pessoas fragilizadas para redes de trabalho escravo geralmente em Espanha) ou grupos rivais para referir conflitos entre ciganos e africanos pois quando não há um branco para culpar o racismo desaparece e passa a rivalidade. Igualmente grave é a banalização da violência entre ciganos através de conceitos como a tradição ou os ajustes de contas. A bruxa em Setúbal mostra-nos como os nomes se tornaram uma espécie da verdade possível em cada circunstância e consoante a identidade dos protagonistas.