É curioso como a percepção que temos dos factos muda em pouco tempo. Há dois anos estávamos fechados em casa e temíamos o pior: a propagação de um coronavírus que podia ser mortal e para o qual não havia vacina nem curativos fiáveis. Assistíamos ao sucesso do regime chinês na erradicação dessa mesma pandemia, ao contrário do que sucedia com as democracias onde reinava a confusão. A China fechara algumas cidades durante várias semanas (por cá sabíamos pouco que fechar podia significar a morte por fome ou doença sem tratamento dentro das próprias habitações) e os resultados estavam à vista: lentamente os confinamentos eram levantados e, aos poucos, uma sociedade de cidadãos cumpridores saía à rua dentro de horários pré-estabelecidos e à vez, de maneira a se evitarem aglomerações. Aquela parecia ser a única forma possível.
Já na Europa e nos EUA reinava a confusão. Os casos positivos atingiam um nível alarmante, os hospitais não davam vazão a tantos doentes, as mortes acumulavam-se sem enterros dignos das pessoas que eram no que se traduziam aqueles milhares de números diários. Os governos estavam atarantados, as pessoas resguardavam-se em casa embora saíssem para fazer compras ou até passear nas ruas próximas. No meio de tudo isso havia uma convicção: a pandemia resolvia-se com uma vancina. Através da ciência.
Foi o que sucedeu. A vacina surgiu, na verdade foram várias e, de imediato, as democracias liberais colocaram em marcha um plano de vacinação único na história. No espaço de um ano a grande maioria da população foi imunizada ao mesmo tempo que o vírus se propagava. Com o tempo, e tal como os cientistas o preveram, o coronavírus mutou-se, uma, duas, três e mais vezes, e foi perdendo força enquanto se tornava mais contagioso. Dois anos depois podemos arriscar que esta pandemia é coisa do passado. Pelo menos aqui na Europa e nos EUA. Nas democracias liberais. Infelizmente o mesmo não podemos dizer da China.
Porque a China, a ditadura comunista chinesa, continua a confinar pessoas em casa. Desde de Março que a cidade de Xangai se encontra isolada. Ninguém entra, ninguém sai. Nem da cidade nem de casa que os confinamentos por aqueles lados são totais; são verdadeiramente reais; são a doer. Até a Organização Mundial da Saúde criticou a política de zero casos de Covid-19 de Pequim. Os dirigentes comunistas chineses esclarecem que esta é a única forma de se evitarem mais de 1,6 milhões de mortes. O que não mencionam é a baixa taxa de vacinação e a falta de qualidade das vacinas chinesas. E é assim que, dois anos passados, as cidades da Europa e dos EUA voltaram à vida normal enquanto na China se continua em 2020 e a economia começa a ressentir-se. Se a crise económica terá consequências políticas é o que saberemos nos próximos meses.
Assistimos a muitas transformações. Durante anos muitas empresas ocidentais fecharam as suas fábricas na Europa e nos EUA para as abrirem na China. A mão-de-obra era barata e os trabalhadores cumpridores. Os resultados foram muito bons pois o custo da produção era baixo, os preços desciam e uma inflação zero permitia juros baixos, o que anulava os riscos do endividamento. A experiência mostra agora que não basta que as pessoas trabalhem bem para que se abram fábricas na China; também é preciso que o governo chinês seja confiável. E a única forma que, até ao presente, conhecemos que nos garante que um governo é confiável e previsível é a democracia liberal. É esta que dá espaço de manobra aos cidadãos para que critiquem e corrijam os erros dos seus governos.
Outra vitória das democracias foi a resposta da Ucrânia à invasão russa e a reacção do Ocidente à firmeza de Kiev. Há quem compare a situação actual do Ocidente à do Império Romano. Entenda que, à semelhança do que sucedeu com Roma, também o Ocidente já viveu o seu apogeu e inicia lentamente o seu longo declínio. A tese é tentadora e até pode ser verdadeira. Mas tem um pequeno senão: o Império Romano não conheceu a liberdade individual. O que os romanos conseguiram foi fantástico a muitos níveis, mas não atingiu este pantamar. E este valor, esta descoberta, é um motor com uma força aparentemente ímpar e única. Uma força que surge quando e onde menos se espera. Quando e onde se crê que a causa está perdida. Uma força que Pequim tenta a todo o custo apagar com ordens de prisão como a do Cardeal de Hong Kong. Com 90 anos, este cardeal católico foi detido pelas autoridades por ter ajudado os manifestantes de 2019 que precisavam de ajuda financeira. Podemos ficar impressionados com a frieza e o cinismo de certos políticos e comentadores portugueses que equiparam o comportamento do governo russo ao da Ucrânia, mas estas pessoas podem escrever e dizer o que pensam. São livres de o fazer e não são punidas. A nossa discordância não passa disso: de uma total falta de acordo.
Quando Francis Fukuyama expôs, em ‘The End of History and the Last Man’, que a democracia liberal é a forma final do governo dos homens, não excluiu possíveis retrocessos. Não negou novas vagas de regimes totalitários. Não pôs de parte novos deslumbramentos por velhas utopias. Fukuyama mencionou apenas que a busca do melhor regime possível terminara com a democracia parlamentar; com o conceito da separação do poder político e da sua limitação. Que tipo de democracia parlamentar é que cada país vai implementar de acordo com a sua cultura e as suas tradições é outra questão. Tal como poderemos manter em aberto as chamadas de atenção que Leo Strauss já fizera ao liberalismo moderno e aos riscos que este representava para o niilismo e que poderiam levar à decadência da civilização. Mas essa discussão, a ser tida, será sempre no seio das democracias liberais que são os únicos regimes que a permitem.
O certo é que podemos concluir, neste ano de 2022, que as democracias estão melhor que em 2020. Estão melhor que as autocracias. Apesar da inflação, da dívida, do populismo, da enorme confusão que resulta de a cada um ser dada a oportunidade de pensar pela sua cabeça é melhor viver em democracia que em ditadura. Por muito estranho que pareça a percepção desta verdade tem uma força que nós próprios desconhecemos apesar de a vivermos todos os dias.