1 Com informação falsa, equívocos e, acima de tudo, pouco ou nenhum rigor, temos assistido a um verdadeiro espetáculo indecoroso sobre as propostas de Francisca Van Dunem para uma Estratégia Nacional contra a Corrupção que o Observador avançou aquiSérgio Sousa Pinto, Pedro Adão e Silva e Daniel Oliveira, entre outros, dispararam artilharia pesada sobre as orientações de Van Dunem para o grupo de trabalho que a ministra irá nomear, nomeadamente sobre uma suposta e alegada intenção de implementar o instituto da delação premiada em Portugal.

E o que dizem estes opinion makers influentes? Vale a pena esquematizar os argumentos — é a única forma eficiente de desmontar a manipulação do debate em curso:

  • As Fake news. Dizem os senhores cronistas que o Governo quer instituir a delação premiada como instrumento de combate à corrupção. Errado. Tiro completamente ao lado do porta-aviões. Os senhores cronistas e arautos do Estado de Direito podem dormir descansados. Basta ler as declarações de Francisca Van Dunem ao Expresso deste sábado para perceber isso. Aliás, se tão influentes e plurais opinion makers tivessem lido o Observador e o Expresso (os únicos jornais que referiram logo na 2.ª feira que não estava em causa a delação premiada) já saberiam disso. Conclusão: ninguém quer implementar a delação premiada, como a professora Teresa Violante explicou nesta pequena entrevista à Rádio Observador.
  • A bufaria. O fantasma da Ditadura é útil sempre que se quer assustar a Opinião Pública. Neste caso, e pela pena de Sérgio Sousa Pinto, serve para aludir ao povo anónimo e aos opositores que denunciavam os nomes de camaradas ao regime salazarista à PIDE. O objetivo também é claro: tentar fazer crer que vai passar a ser possível a alguém apontar o dedo a outro cidadão e automaticamente essa pessoa será acusada pelo Ministério Público, julgada e condenada por um tribunal. Como é óbvio, também não é nada disto que está em causa.
  • A Bíblia. Podem não acreditar mas Pedro Adão e Silva até recorreu à Bíblia para fundamentar os seus preconceitos jurídicos e ideológicos: “Não há árvore má que dê bom fruto”. Eis uma frase mais própria de um determinista social do que de um progressista como Adão e Silva. É estranho que um socialista que acredita, como Rosseau, que os homens são bons por natureza, recorra à Bíblia para dizer o contrário.
  •  O experimentalismo. “A verdade é que não se encontra um penalista que defenda a legalidade do princípio”, diz Adão e Silva. Recomendo ao comentador a leitura do livro do professor Figueiredo Dias chamado “Acordos sobre a Sentença em Processo Penal”, bem como dois documentos assinados em 2012 por Francisca Van Dunem, então procuradora-geral distrital de Lisboa, e Euclides Dâmaso, então procurador-geral distrital de Coimbra. Já Daniel Oliveira, que diz que os juízes são contra a ideia da justiça negociada, pode ouvir aqui a opinião do juiz desembargador Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical de Juízes.
  • O princípio civilizacional. Como Adão e Silva diz: nenhuma “sociedade digna” firma “um acordo com alguém que reconhecidamente praticou um crime”, pois tal “é uma ideia moralmente corrosiva” — lá está a moral novamente. Em vez de ler demasiadas vezes a Bíblia (uma dica: cuidado com as interpretações literais), Adão e Silva devia fazer alguma pesquisa. É que a Alemanha tem o mecanismo “urteilabsprachen”, a Espanha o instituto da “conformidad”, a França tem a “plaider coupable” e a Itália o “patteggiamento”. Ou seja, todos estes países têm mecanismos de justiça negociada. Se Adão e Silva não considera estes países amigos europeus como “sociedades dignas”, resta saber quais sãos as suas referências civilizacionais.

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Com tanta ignorância, manipulação e confusão é melhor clarificar o que está em causa — e com isto também elucidar os senhores cronistas sobre a informação errada que está subjacente às suas opiniões.

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O que a ministra da Justiça pretende é alargar o âmbito de instrumentos que já existem na lei para tentar quebrar com os pactos de silêncio que existem sempre entre corruptores e corrompidos. Esquematizando para ser mais fácil a compreensão — e abordando primeiro as propostas para a fase de investigação:

  • Acabar ou alargar generosamente um prazo que está hoje fixado em 30 dias após a prática do crime para que alguém possa fazer uma denuncia (art. 374.º B do Código Penal). Obviamente que a existência de um prazo tão curto (ou até de qualquer prazo) torna a norma inútil. É isso mesmo que afirmam magistrados experientes como Francisca Van Dunem, Maria José Morgado ou Euclides Dâmaso há muitos anos. Ou seja, seria possível aos arguidos colaborarem com a justiça mesmo após a abertura do inquérito a crimes praticados há mais de um mês. Daniel Oliveira não deve saber, mas é rara a investigação a crimes de corrupção que ocorreram há menos de 30 dias. Investigar a corrupção não é a mesma coisa que investigar um roubo ou homicídio.
  • Tal colaboração não consiste em ‘apontar o dedo a alguém’. As denúncias não se baseiam exclusivamente em testemunhos mas sim em provas documentais que comprovem a prática dos crimes e que permitem ao Ministério Público quebrar o pacto de silêncio entre corruptores e corrompidos.
  • O sistema a implementar consiste na confissão integral e sem reservas da prática dos crimes por parte dos arguidos que queiram colaborar. Não há negociação da culpa, a base do plea bargain dos Estados Unidos.
  • Mediante tal confissão e a obtenção de provas documentais, o Ministério Público fecha um acordo com arguido no qual propõe a dispensa de pena ou uma pena mínima e uma pena máxima, tal como acontece na Alemanha. Ou seja, não acorda uma pena concreta. A pena será sempre decidida por um tribunal.

Por outro lado, a ministra da Justiça também quer facilitar as confissões em julgamento. Para tal, quer alterar a redação art. 344.º do Código de Processo Penal para que seja possível ao Ministério Público propor ao tribunal uma pena suspensa (ou uma pena com limite mínimo e máximo) desde que as vantagens económicas obtidas ilicitamente sejam devolvidas ao Estado.

Estas duas propostas, a serem aplicadas, podem permitir julgamentos mais rápidos — com todas as poupanças de tempo e económicas para o próprio Estado e arguidos — e a consequente paz jurídica.

3 Sérgio Sousa Pinto, Pedro Adão e Silva e Daniel Oliveira podem não saber mas a justiça negociada já existe no nosso ordenamento jurídico.

No combate à droga, por exemplo, o legislador permite desde há muito mecanismos de dispensa, atenuação e de suspensão de pena aos arguidos que colaborem com a Justiça. Será o combate à droga — um combate onde Portugal é uma referência internacional pela visão integrada de prevenção e de repressão — hoje mais importante do que o combate contra a corrupção?

Na área regulatória, também é possível à Autoridade da Concorrência negociar as coimas que aplica às empresas infratoras mediante uma confissão das irregularidades cometidas e até o fornecimento de provas que fundamentem as denúncias. Exemplo concreto: o processo em que a Autoridade da Concorrência decidiu em setembro aplicar coimas no valor de 225 milhões de euros a 14 bancos por concertarem os produtos de crédito que ofereciam na banca de retalho só foi possível porque o Barclays, que também participava no cartel, denunciou o caso, ganhou o direito ao mecanismo de clemência e não foi multado.

4 Obviamente que temos que analisar a aplicação destes mecanismos com ponderação. Na conferência que o Observador organizou no dia 10 de dezembro, ficou claro que os magistrados Maria José Morgado, Ricardo Cardoso e Amadeu Guerra recomendam a adaptação dos mesmos à nossa realidade constitucional e ao nosso ordenamento jurídico — e não um mero copy paste de normas internacionais. (ver vídeo aqui).

A professora Teresa Violante também deixou várias alertas sobre o sistema alemão, a principal inspiração da ministra Francisca Van Dunem, que devemos ter em conta (ver aqui a partir dos 22m):

  • A justiça negociada é responsável por 90% das condenações;
  • O sistema de justiça negociada pode potenciar uma maior desigualdade no acesso à justiça, visto que os mais pobres terão uma tendência para negociarem mais facilmente uma pena;
  • É fundamental que o sistema judicial escrutine as denúncias de forma cabal para evitar a condenação de denunciantes que não são culpados. Principalmente num sistema como o nosso em que o Tribunal Constitucional é político e não um Tribunal Constitucional de Liberdades e Garantias como o alemão.

Devemos ter em atenção estes e outros alertas e aprender com outros sistemas para refletir sobre a melhor solução para o nosso ordenamento jurídico. O que não podemos fazer é com base em preconceitos, ideias feitas e pressupostos errados, matar qualquer debate à nascença em nome de uma suposta (e falsa) superioridade moral do sistema judicial português.

No fim de contas, e se lermos as posições de advogados como João Medeiros, Paulo Sá e Cunha, Paulo Saragoça da Matta e Rui Patrício expressas ao jornal Eco, o aprofundamento da justiça negociada é muito mais consensual na comunidade jurídica do que os três cronistas acima citados pensam.

Texto alterado às 11h48m