Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva e António Costa. Ou dito de outra forma: as três principais figuras do Estado. O primeiro é Chefe de Estado e o mais alto magistrado da Nação (seja isso o que for). O segundo é Presidente da Assembleia da República de Portugal. O terceiro é o Primeiro-Ministro. Marcelo Rebelo de Sousa, a primeira figura do Estado, não sabe o que diz. Augusto Santos Silva, a segunda figura do Estado, manobra para vir a ser a primeira ao mesmo tempo que recupera o silêncio do PS sobre José Sócrates. António Costa, a terceira figura do Estado, faz de conta que não percebe o estado a que levou o Estado.
Augusto Santos Silva, o desaludido. Porque um texto não tem de se arrumar como as cerimónias oficiais comecemos pela segunda figura do Estado. Este atropelo no protocolo está mais que justificado com a frase proferida pela segunda figura do Estado a trabalhar para vir a ser primeira durante a entrevista à CNN: “E quanto às questões a que quer aludir, elas estão em justiça. Deixemos a justiça tratar. Porque eu também sou uma das pessoas que gostará de saber o que é que realmente se passou.”
Esta frase faz parte da resposta de Santos Silva à pergunta: “Foi, de facto, um defensor muito forte de José Sócrates. E há quem diga que não fez autocrítica suficiente. Não se apercebeu de algumas das coisas de que depois José Sócrates foi acusado e que estariam a acontecer?” e é um condensado sobre a arte da desresponsabilização.
Santos Silva começa por não nomear o assunto por que estava a ser interrogado, são apenas as “questões a que quer aludir”. Em seguida recorre ao mantra desculpabilizante do “Deixemos a justiça tratar.” Por fim, rematou o assunto com uma afirmação que diz tudo sobre o que realmente pensa: “eu também sou uma das pessoas que gostará de saber o que é que realmente se passou.” Realmente? Porquê realmente? Aquilo que a investigação policial revelou e as palavras de Sócrates em sua defesa nos mostraram sobre a desrazoada vida do ex-primeiro-ministro não chegam para que Santos Silva saiba que, independentemente daquilo que a justiça vier a decidir, estamos realmente perante um escândalo político?
Na entrevista à CNN ficámos a saber também que a segunda figura do Estado faz sandes e lava louça (eu prefiro fazer máquinas com roupa seleccionada por cores mas aceito sugestões para sandes que resistam a umas horas de calor na praia). Mas a segunda figura do Estado, que para mais quer ser primeira, tem perceber que das sandes e da louça só fala se quiser. Já sobre a actuação de José Sócrates a opção não se coloca: deve-nos explicações não sobre Sócrates mas sobre si mesmo. Não viu? Não percebeu? Ou acha que não existe nada de criticável? E também temos de saber porque recusou que fosse mostrada no parlamento a exposição “Totalitarismos na Europa”, dedicada aos crimes cometidos por regimes fascistas e comunistas em diversos países europeus. Ou porque bloqueia a atribuição de uma vice-presidência ao Chega…
Marcelo Rebelo de Sousa, o estrafegado: “Aumentar juros a este ritmo não é para curar o doente, é estrafegá-lo“. Marcelo, a primeira figura do Estado, foi à Gulbenkian. Ouviu Vítor Constâncio e pouco depois aconteceu o momento “Marcelo Rebelo de Sousa a falar aos jornalistas”, sucessor do momento “Marcelo a descrispar”. Os momentos “Marcelo Rebelo de Sousa a falar aos jornalistas” sucedem-se a um ritmo avassalador. Em queda nas sondagens, o presidente reage perante os microfones como uma fada diante de uma varinha de condão partida: repete os gestos e os truques, interiormente esperando que o feitiço aconteça de novo e que a magia da popularidade regresse. Cada falhanço acentua o dramatismo da tentativa seguinte.
As declarações de Marcelo a propósito da subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu (BCE) não são sobre a subida das taxas de juro nem sobre o BCE e muito menos sobre os impactos desta subida. O estrafegado que estrebucha nas palavras de Marcelo afinal é ele mesmo, pois é ele quem se sente a estrafegar. Durante anos as intervenções do BCE garantiram juros baixos e permitiram a Portugal manter a ilusão de que o crescimento resultava da conjugação entre o optimismo da primeira figura do Estado e o optimismo irritante da terceira figura do Estado: devidamentos adicionados e agitados em noticiários festivos, os dois óptimos geravam um país positivo, até o melhor do mundo… A inflação veio pôr fim a esta auto-ilusão. E Marcelo estrafega porque não vislumbra saída. Ou melhor dizendo começou logo a vislumbrar quando teve aquele momento “falar aos jornalistas”: vai atacar a subida dos juros e também o BCE. A primeira figura do Estado entrou em auto-estrafegamento e não se vê como se libertará do nó que colocou à volta do seu próprio pescoço. Quanto a nós devemos dar graças por estarmos no euro pois alguém tem dúvidas sobre o que nos teria acontecido caso tivéssemos moeda própria? Venezuela da Europa seria a definição mais apropriada.
António Costa. O contrariado. A terceira figura do Estado procura uma forma de deixar de ser a terceira figura do Estado. A maioria absoluta tornou-se uma armadilha para António Costa. Em primeiro lugar, a maioria absoluta privou-o daquilo que gosta e sabe fazer: gerir equilíbrios até atingir aquele zénite que se basta a si mesmo ou, na mais excêntrica das situações, em que se faz alguma coisa para que tudo permaneça na mesma. Em segundo, a existência de uma maioria absoluta veio lembrar, sobretudo àqueles que não são figuras do Estado, que as figuras do Estado têm agora condições para fazer reformas. Ora a terceira figura do Estado não quer reformar nada. Que lhe lembrem que tem condições para o fazer causa-lhe uma irritação nevrálgica. Em terceiro, o fim da maioria absoluta deixou os seus antigos parceiros livres para serem oposição. E a terceira figura do Estado sem paciência para os ouvir.
Em resumo, a terceira figura do Estado quer continuar a ser figura mas de preferência fora deste Estado. A segunda quer ser primeira a vários custos e a primeira esquece-se do Estado.