Ouvimos frequentemente que as redes sociais estão a matar a democracia. O argumento é simples: a desinformação nelas propagada ora transforma as atitudes políticas dos eleitores, ora desmobiliza-os, deixando-os mais apáticos e levando-os a aceitar inconscientemente procedimentos e práticas políticas pouco recomendáveis. Estas campanhas de desinformação, de acordo ainda com o mesmo argumentário, são organizadas e levadas a cabo por actores externos como o governo russo ou por grupos extremistas. Frequentemente, ouvimos também que as redes sociais levaram a um aumento do discurso de ódio e da polarização política. Mas será tudo isto realmente verdade?
Esta semana foi publicado na Nature Communications, uma das mais reputadas revistas científicas, um estudo muito importante realizado por investigadores do Center for Social Media and Politics da New York University, um dos mais reputados centros de investigação desta área. O estudo analisa a campanha de influência russa levada a cabo no Twitter durante as eleições norte-americanas de 2016, que elegeram Donald Trump como presidente dos EUA, bem como os seus efeitos nos eleitores. Contrariando a crença popular, os investigadores concluem que não existe evidência suficiente para afirmar que a exposição de alguns utilizadores a conteúdo produzido por contas associadas à campanha russa de tentativa de influência nas eleições norte-americanas alterou significativamente as suas opiniões políticas ou o seu sentido de voto.
Existem várias razões para que os efeitos encontrados sejam muito pequenos ou mesmo nulos. Em primeiro lugar, o conteúdo propagado por este tipo de campanha extremista é normalmente consumido por uma pequeníssima proporção de eleitores e utilizadores de redes sociais. Neste caso, por exemplo, 70% do conteúdo foi consumido por apenas 1% dos utilizadores. Segundo, este 1% é, geralmente, um eleitorado que já se encontra radicalizado ou, pelo menos, altamente politizado e, em geral, já concorda com a direcção política do conteúdo que está a consumir. Neste caso, a maioria dos utilizadores que consumiram o conteúdo da campanha russa já eram apoiantes convictos do Partido Republicano e já iriam votar em Donald Trump, mesmo que a campanha de influência russa nunca tivesse ocorrido.
Finalmente, o estudo diz-nos também algo que deveria ser do senso comum: os utilizadores das redes sociais não consomem apenas um único conteúdo — um tweet ou um post de Facebook — durante a campanha eleitoral, nem consomem informação de apenas uma única fonte. Na verdade, a grande maioria dos utilizadores é simultaneamente exposto a uma grande multiplicidade de fontes e conteúdos. Mesmo olhando apenas para aquele grupo restrito de utilizadores que consumiu algum tipo de “informação russa” durante a campanha eleitoral norte-americana de 2016, os investigadores concluem que o mesmo grupo foi simultaneamente muito mais exposto a conteúdo proveniente de órgãos de informação norte-americanos e de contas de políticos e candidatos norte-americanos. No último mês da campanha, o utilizador médio foi exposto a 4 posts por dia provenientes de contas ligadas à campanha de desinformação russa. Ao mesmo tempo, foi também exposto a 106 posts por dia provenientes de órgãos informativos norte-americanos e 35 posts provenientes de contas de políticos norte-americanos. Assim, é natural que os efeitos da campanha russa sejam diminutos ou nulos. Não tem sentido pensar que um eleitor altera todo o seu perfil de preferências políticas porque observou um ou dois posts nas redes sociais e, simultaneamente, não seja minimamente influenciado por centenas de outros posts e conteúdo informativo. Algum de nós é genuinamente convencido por algo que apenas viu uma vez, de forma fugaz, e que ainda por cima veio de uma fonte pouco conhecida ou reputada?
A resposta a esta pergunta traz-me ao que me parece ser o ponto essencial de toda esta discussão. Afinal de contas, consideramos que os eleitores comuns das nossas democracias são suficientemente racionais e autónomos para votarem de acordo com aquilo que consideram ser o melhor para eles próprios? Consideramos que os eleitores são suficientemente adultos para conseguirem lidar com a multiplicidade de informação e de discursos políticos que encontram no seu dia-a-dia, online e offline? Se a resposta a ambas as perguntas for sim, então não podemos deitar estes pressupostos universalistas e liberais sobre o indivíduo pela janela fora assim que este expressa preferências das quais não gostamos. E não podemos considerar, pelo menos como hipótese mais verosímil, que a causa dos seus comportamentos políticos é serem vítimas de manipulação. Na raiz do argumento daqueles que culpam as redes sociais por manipular as mentes dos eleitores, extremando o seu sentido de voto, está a ideia de que estes votariam de outra forma se agissem de acordo com os seus “verdadeiros interesses” e sem estar sob influência do manipulador. Porém, antes de pensarmos que as redes sociais são o ópio do povo, devemos questionarmo-nos se existem outras possíveis explicações, baseadas no envolvente económico, social e cultural dos eleitores, que os possam levar a determinadas formas de conceber o mundo e os conduzam a determinadas opções políticas legítimas.
Obviamente que os resultados deste importante estudo não invalidam que seja necessária uma regulação do conteúdo das redes sociais. No entanto, penso que tais medidas devem ser amplamente debatidas e discutidas na esfera pública, e tomadas com extrema cautela. Em primeiro lugar, devem ser rigorosamente enquadradas no princípio e nas regras de liberdade de expressão em que as nossas sociedades se baseiam. Devemos sempre privilegiar mais e melhor discurso democrático e liberal por contraponto aquele que consideramos nocivo, de modo a conduzi-lo à irrelevância e insignificância. Esta é, de resto, a forma mais eficaz de combater esse discurso, ao invés de políticas e campanhas de regulação de conteúdo, que são muitas vezes contraproducentes, pois não convencem aqueles que já desconfiam das instituições. Em segundo lugar, devemos ser extremamente cuidadosos na escolha das organizações e pessoas nas quais depositamos a responsabilidade de controlar os limites da liberdade de expressão. Levanta-se aqui a questão clássica de quem guarda os guardiões.
No entanto, e em terceiro lugar, quero realçar que o conteúdo produzido e difundido online não é todo igual. A informação que encontramos na conta de Twitter do jornal The New York Times não é da mesma natureza, em impacto ou função social, do conteúdo que um utilizador anónimo coloca online e que apenas pretende partilhar com um universo de poucas centenas ou poucos milhares de amigos e conhecidos. O primeiro é comparável a um jornal, o segundo a uma conversa em voz alta que teríamos na rua e susceptível de ser ouvida por quaisquer transeuntes. Não podemos tratar estes dois conteúdos da mesma forma nem os sujeitar às mesmas normas.
Em suma, a polarização política, os boatos, as mentiras e o discurso de ódio não começaram com as redes sociais e estamos longe de demonstrar que a sua versão online é pior do que aquelas que já conhecemos e testemunhamos offline. Antes de culparmos as redes sociais pelos males das nossas democracias e pela manipulação do sentido de voto e das preferências dos eleitores, devemos antes tentar compreendê-los como seres humanos não menos inteligentes que nós e oferecer-lhes soluções e projectos políticos alternativos que resolvam os seus problemas e anseios reais.