A non-trivial share of the people are idiots.”
Professor universitário Russo, Março de 2022

Em Março de 2022, um professor universitário russo escreveu uma carta a uma académica ucraniana radicada nos EUA. Na sua carta, tentava explicar as várias posições dos seus colegas na sua universidade na Rússia quanto à invasão que Putin acabara de ordenar. O professor universitário, opositor da invasão, tentava explicar como seria possível que, muitos dos seus colegas, cidadãos com elevada educação, concordassem com as decisões do regime. Tentava também explicar por que razão não via centenas de milhares de cidadãos russos a protestar contra o regime, em massa, nas ruas ou no espaço público. Entre os seus argumentos estavam a violência e repressão do regime, os traumas e resquícios do passado Soviético e, talvez mais importante, o papel da propaganda e do controlo de informação. Dizia ele que uma proporção não trivial da população não pode, ou não quer, procurar informação não-unilateral ou deseja simplesmente ficar de fora da política. E, infelizmente, num regime autocrático como a Rússia, a informação mais fácil de obter, disponível em todo o lado, é a propaganda do regime. Não por acaso, há cerca de quatro anos, os académicos Sergei Guriev e Daniel Treisman cunharam o termoinformational autocrats”: a manipulação de informação e o boost artificial da popularidade do líder são técnicas absolutamente centrais de manutenção do poder em ditaduras, autocracias competitivas e democracias iliberais nos dias de hoje. (Naturalmente, Putin, tendo sido incluído na tribo, não tem problemas em utilizar também a violência e repressão extremas, como todos já testemunhámos)

Em Maio de 2023, num contexto completamente diferente – e, felizmente, num país com problemas incomparáveis aos que acabei de descrever em cima –, muitos Portugueses, pelo menos os mais atentos às notícias da actualidade política, perguntam se será possível obtermos real accountability na nossa democracia. Como será possível termos responsabilidade política e administrativa por falhas e abusos institucionais graves, como a que sucedeu com os Serviços de Informação da República, ou por conluios entre partidos para que não tenham de competir politicamente de forma séria e distribuírem rendas entre si de forma fácil? Será possível que a democracia e os eleitores deixem passar isto impune?

Estas duas situações, aparentemente desconexas e, sem dúvida, de magnitudes completamente diferentes no que toca à sua gravidade e aos sistemas políticos em causa, têm em comum uma interrogação mais profunda sobre as capacidades políticas e real inteligência dos cidadãos comuns. Será que podemos confiar neles para impedir que os nossos sistemas políticos entrem em decomposição? Em ditadura, será que podemos confiar na capacidade dos cidadãos de ver para além da propaganda, para procurar informação e resistir? E, em democracia, será que podemos confiar nos eleitores e nas suas decisões para conduzir as sociedades a bom porto? Serão os eleitores capazes de punir os incompetentes, recompensar os competentes e capazes de discernir quais as melhores políticas públicas a seguir?

Os politólogos Achen e Bartels, lançaram, em 2016, um livro controverso onde argumentam que não. Em Democracy for Realists: Why Elections Do Not Produce Responsive Government, os autores argumentam que a grande maioria dos eleitores não vota de forma racional, considerando com rigor a informação disponível sobre o desempenho dos políticos em funções nas várias áreas de políticas públicas e atribuindo apenas responsabilidades políticas a quem as tem (por exemplo, não é “racional” um eleitor votar contra o presidente actual da sua Junta de Freguesia, porque a economia nacional está em dificuldades). Na verdade, só o acto de apenas atribuir responsabilidades políticas a quem as tem, dados os múltiplos níveis de governo existentes (autárquico, legislativo, executivo, presidencial, europeu, e acontecimentos exógenos para lá do controlo de qualquer um deles), é dificílimo. Ao invés dos eleitores votarem de forma calculada e atribuindo a responsabilidade correcta a quem a detém, Achen e Bartels argumentam que a maioria dos votantes se move por instintos tribais, como votar no partido com o qual se identifica, independentemente dos resultados concretos, ou votar de uma determinada forma apenas porque se pertence a um determinado grupo e identidade sociais.

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E, de facto, quando não concordamos com o voto ou decisões da maioria, especialmente em situações dantescas, inevitavelmente questionamos: será que podemos confiar na inteligência dos eleitores? Afinal de contas, se todos os dias nos deparamos, na nossa vida quotidiana, com pessoas estúpidas, imorais, irritantes, corruptas, irresponsáveis ou apáticas, como podemos confiar no eleitorado como um todo?

A verdade é que quase ninguém é completamente democrático. Isto é, quase ninguém acredita que todas as decisões devem ser tomadas apenas pela vontade da maioria, sem outros valores ou restrições. E isso necessariamente decorre do facto de considerarmos que a maioria não está sempre certa.

A maioria dos economistas considera que a política monetária e a definição das taxas de juro devem ser deixadas a bancos centrais, ao invés de serem decididas por governos ou parlamentos. Só assim, argumentam, será possível que a política monetária não seja sistematicamente utilizada por governos sucessivos de forma artificialmente expansionista imediatamente antes das eleições (e o público não conseguiria resistir a estes benefícios de curto-prazo), o que criaria problemas crónicos às economias e taxas de inflação muito mais elevadas que o desejado.

Por seu lado, juristas e constitucionalistas consideram certas regras e valores constitucionais devem ser inultrapassáveis pela vontade de maiorias simples ou mesmo qualificadas. Argumentam, portanto, que certas coisas estão “fora” do âmbito de decisão política num regime liberal, mesmo que para isso tenhamos de perverter a vontade da maioria. São valores e questões inegociáveis, como por exemplo os listados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Da forma semelhante, cientistas e especialistas em tecnologia argumentam que inúmeras decisões muito complexas devem ser baseadas num conhecimento de causa profundo e em evidência científica, desde a saúde pública, às alterações climáticas ou à regulação de tecnologias de ponta. Por isso mesmo, estas decisões têm de estar insuladas do normal jogo democrático, sendo decidas por especialistas e não por maiorias.

A maioria destas pessoas tem os melhores interesses dos cidadãos em mente. Não tenho grandes dúvidas disso, até porque não sou conspiratória. No entanto, quando nos deparamos com as falhas das democracias contemporâneas, os defeitos cognitivos e enviesamentos de todos nós (eu e o leitor incluídos) e, simultaneamente, com os especialistas de cada área a reivindicar que certas políticas públicas sejam decididas por quem mais leu e estudou o assunto, estamos inevitavelmente a reduzir o âmbito da política, devido a uma certa desconfiança quanto aos defeitos e oscilações da maioria. Se cada grupo de especialistas for o melhor decisor para as políticas públicas da sua área, que espaço resta para a política democrática, baseada nas maiorias de todos os cidadãos por igual?

Apesar de concordar com a afirmação em epígrafe do professor universitário Russo – “uma proporção não-trivial da população é idiota” – e de muitas vezes questionar a possibilidade de accountability dos decisores políticos nas democracias contemporâneas, quero contudo defender a inteligência dos eleitores. Claro que não defendo que tudo seja decidido por maioria simples, simplesmente digo que devemos dar mais crédito aos eleitores antes de começar a pensar em tecnocracias e epistocracias ou em justificações baseadas na sua irracionalidade. Não defendo a racionalidade perfeita dos eleitores, que não existe na realidade, mas a sua inteligência. Isto é, a sua capacidade de combinar vários tipos de pensamento para, frequentemente (mas não sempre), tomar decisões que fazem sentido.

O primeiro problema com qualquer argumento que queira restringir o direito de voto apenas a quem tem capacidade de o fazer é o simples facto de ser, na vasta maioria dos casos, muito difícil de separar os interesses substantivos de quem propõe a composição do grupo decisor da própria proposta procedimental. Isto é, como posso confiar que um grupo não reivindica para si determinado poder apenas porque quer implementar as coisas de acordo com as suas preferências pessoais impopulares? No passado, já se argumentou que as mulheres não eram capazes de tomar decisões políticas autónomas independentes do seu marido, ou que os trabalhadores dependentes não conseguiam votar de forma autónoma (e daí o voto censitário) ou que populações indígenas ou raciais diferentes da nossa não estavam num estádio de desenvolvimento suficiente para conseguir tomar decisões políticas civilizadas. Quebrar o princípio da igualdade política – uma das grandes qualidades não-consequencialistas da democracia – é perigoso e arenoso. E quem decide quem tem capacidade para votar?

A segunda questão é que, na verdade, não é óbvio dar o salto de defeitos cognitivos individuais para defeitos do eleitorado como um todo. É possível que muitos eleitores sejam individualmente irracionais, mas que o todo decida de forma racional, um mecanismo conhecido como o wisdom of the crowds (a sabedoria da multidão). Um exemplo absurdo, mas claro: se num eleitorado de 10 milhões de pessoas, 4.999.999 votarem sempre no mesmo partido A e outros 4.999.999 votarem sempre no mesmo partido B, mas dois cidadãos votarem de acordo com a competência e desempenho dos candidatos, então as decisões globais podem bem ser racionais! O exemplo é absurdo, mas a intuição é que os vieses cognitivos de uns podem “compensar” os vieses cognitivos de outros.

Finalmente, e mais importante, os eleitores quando tomam decisões têm de pesar muitas considerações: a competência e honestidade dos políticos, o seu desempenho em muitas áreas, a sua ideologia ou a sua identidade partidária. Mas, embora tenham de pesar inúmeras dimensões, os eleitores têm apenas um voto. Assim, é possível que muitos eleitores desprezem profundamente a corrupção ou a falta de integridade política, que estejam insatisfeitos com muitas áreas governativas, mas que ainda assim votem para reeleger o governo em funções. Simplesmente porque valorizam outras coisas ainda mais, sejam interesses materiais imediatos, o desempenho governativo noutras áreas ou se desgostarem da oposição ainda mais. Neste caso, os eleitores não são irracionais. Antes pelo contrário, decidem segundo um complexo processo onde pesam e comparam muitas coisas antes de tomar uma decisão.

Por isso, costumo sempre dizer: antes de dizerem que os eleitores são estúpidos, uma resposta fácil a coisas que não compreendemos ou com as quais não concordamos, pensem se as mesmas decisões dos eleitores não podem ser explicadas por considerações e valorizações dos outros, diferentes das nossas, e bem racionais. Mais difícil é levar os eleitores a sério, como pessoas adultas e capazes de tomar decisões autónomas, porque isso significa que a solução não é restringir a política, mas sim elevar o debate e a deliberação por forma a persuadir quem não está de acordo connosco. E, reparem, acredito nisso, mesmo acreditando que uma proporção não-trivial da população é estúpida! Mas é a única forma de acreditar no princípio liberal da igualdade política.