29 de Junho. A orquestra de Kiev toca no Museu do Prado. São quinze minutos que antecedem o jantar dito informal oferecido pelo presidente do Governo espanhol no âmbito da cimeira da NATO. Mas por mais informal que a imprensa diga que é o jantar a informalidade não contempla obviamente a leitura de mensagens e muito menos o visionamento dos vídeos que, no caso concreto, pretendem informar António Costa do tumulto que a essa hora (20h 30 em Madrid/ 21h 30 em Lisboa) está levantado em Portugal a propósito do anúncio feito pelo ministro Pedro Nuno Santos sobre a localização do novo aeroporto.

Ou terá sido enquanto degustava o menu de quatro pratos concebido pelo cozinheiro-estrela José Andrés que António Costa se apercebeu da gravidade da situação? Gastronomicamente falando (nestas coisas os espanhóis não deixam os seus créditos por mãos alheias e tratam os menus como uma extensão dos negócios estrangeiros), será que Costa começou a perceber a crise que o esperava quando tomou o aperitivo de bacalhau, laranja e beterraba ou foi apenas enquanto provava o gaspacho de lagosta com legumes de verão aromatizados com manjericão e azeite virgem extra? Por mim preferia que tivesse sido já enquanto trincava a paleta de borrego cozinhada a baixa temperatura com puré de limão (vou tentar fazer este borrego em minha casa e logo darei notícias!). Mas, seja como for, quando chegaram os morangos de Aranjuez, com aniz de Chinchón, wafer e caramelo de violetas, Costa já devia estar, como soe dizer-se, ao corrente. E é aqui que chegamos ao nó da questão: ao corrente de quê? Sim, como no filme que tantas tardes de sábado nos prendeu no binómio sofá-televisão, também neste assalto ao aeroporto real que teve lugar em Portugal a 29 de Junho, nem tudo o que parece é e, como ensinam os filmes, convém que não nos enganemos no vilão.

Afinal, qual foi o erro de Pedro Nuno Santos? Em absoluta roda livre aproveitou o facto de António Costa estar incontactável na cimeira da NATO para anunciar a opção Montijo+Alcochete que não tinha sido aprovada pelo governo? Ou, entre outras razões, para reduzir o ascendente de Mariana Vieira da Silva na sucessão de Costa, precipitou o anúncio da opção que já tinha sido tomada pelo Governo? A primeira hipótese é o que chamamos golpada. A segunda, para usar as palavras do próprio Pedro Nuno Santos, uma “falha de comunicação”.

Nada mais além da minha intuição me diz que é a segunda hipótese a mais próxima da realidade. E sublinho que de cada vez que revejo as declarações de António Costa sobre este assunto mais me convenço de que não devo estar muito longe da verdade: António Costa não trata Pedro Nuno Santos como o traidor que este de facto seria se tivesse aproveitado a incomunicabilidade do primeiro-ministro durante a cimeira da NATO para o desautorizar numa decisão tão importante para o país. Trata-o sim como um azougado que cometeu um deslize de timing e o obrigou a ele, António Costa, a recuar: agora, oficialmente, o governo não tem nem tinha qualquer opção tomada nesta matéria e o que seria uma mais que provável simulação de procura de entendimento com o PSD passou a negociação. Pedro Nuno Santos mais o seu secretário de Estado das Infraestruturas, sociólogo especialista em marketing e estudioso das desigualdades no ISCTE, não inventaram nada. Tiveram foi falta de jeito.

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É uma ilusão acreditar que Pedro Nuno Santos saiu derrotado desta crise. Pelo contrário, todos percebemos que tem fiéis e apoios: na bancada parlamentar do PS trinta dos actuais deputados são pedronunistas. E no governo quantos ministros mais além de Ana Abrunhosa estão de “coração apertado” pelo destino de Pedro Nuno Santos? Ou perguntemos doutro modo: alguém se sente de coração apertado por Mariana Vieira da Silva ter falhado como coordenadora do governo na ausência de António Costa? Ou por Medina ter de aplicar as salvaguardas exigidas pela nova troika em troca de auxílio perante a subida dos juros? Ou por Ana Catarina Mendes não conseguir ser mais que Ana Catarina Mendes?… A realidade é o que é, esta crise também serviu para se contarem espingardas dentro do PS: Pedro Nuno Santos tem mais.

Já António Costa está a descobrir que muitos dos tijolos do muro que derrubou à esquerda do PS estão agora a ser usados para construir outro muro, só que este dentro do próprio PS. Sem a necessidade de mostrar união perante o BE e o PCP, desaparecido o estado de suspensão do tempo que veio com a COVID, o PS libertou-se da máscara e deixou à vista um partido com dois rostos: o velho PS onde se destacavam dirigentes ligados a profissões liberais e à administração pública é já história. O novo PS, o que está atrás de Pedro Nuno Santos, nasceu e cresceu dentro do estado, para eles o socialismo é um instrumento de poder (o mais eficaz) e não um programa político.

A agravar o contraste entre o presente que se está a tornar passado — Costa — e este futuro que está com pressa de ser algo mais que uma promessa — Pedro Nuno Santos — está o carácter imobilista de Costa enquanto governante. António Costa não faz uma reforma, os seus governos gerem com atraso o que acontece. O hábil táctico político amarrou as mãos do governante. Pelo contrário, Pedro Nuno Santos surge como alguém que faz, que pode errar mas faz.

Sim, é verdade que Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação do XXIII Governo Constitucional, se humilhou e protagonizou  a mais constrangedora declaração de um político de que há memória em Portugal. Mas se passarmos do plano do ético para o do útil e perguntarmos para quê em vez de porquê (como é que alguém livre se sujeitou àquilo?),  tudo se torna claro: o ministro que é sacrificava-se pelo líder que quer vir a ser e que muito provavelmente será.