Desde que a pandemia do novo coronavírus atingiu o continente europeu, temos ouvido várias sentenças dramáticas impor-nos que esta é a hora da verdade do projecto europeu — ou mostra o que vale e para que serve, ou deixa de servir e cai em desgraça. Há uma certa verdade nisso, mas que em muito ultrapassa os aspectos económicos. Antes de tudo, a União Europeia é uma união de democracias. E é, enquanto tal, que deve responder aos desafios das populações que representa. Isso implica uma rejeição inequívoca das soluções de matriz iliberal ou autoritária, que fragilizam a legitimidade das democracias no continente europeu. Por isso, a resposta europeia à pandemia do Covid-19 tem de ir muito além das questões de saúde pública e dos apoios económicos. Tem de ser, desde logo, uma resposta política de defesa da democracia. E tem de começar por uma reacção forte contra a actuação do governo húngaro, que aproveitou a pandemia para concentrar (ainda mais) poderes em si mesmo.

O estado de emergência não suspendeu a democracia portuguesa. A ordem constitucional manteve-se, as instituições políticas continuam a funcionar, os poderes do governo permanecem limitados, os cidadãos não prescindiram das suas liberdades e direitos, entre as quais a de expressão e de escrutínio do poder político. Tudo isto soa a dado adquirido — não passaria pela cabeça de ninguém que António Costa convertesse a pandemia numa oportunidade para um golpe de Estado constitucional. E, gostaríamos todos de poder declarar, não passaria pela cabeça de ninguém que algo semelhante pudesse suceder no seio da União Europeia. Mas pode. Foi isso que fez Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro. Desde segunda-feira, e enquanto vigorar o regime de excepção, Viktor Orbán e o seu governo podem suspender leis e passar por cima do parlamento, se assim entenderem. Podem travar a realização de eleições. Podem prender por vários anos um indivíduo que seja acusado de difundir “factos distorcidos” ou falsidades que as autoridades considerem interferir com a segurança pública. E podem perpetuar-se no poder. Ao contrário das boas práticas democráticas, este regime de excepção imposto na Hungria só pode ser desfeito numa votação parlamentar com dois terços de votos favoráveis. Para se ter noção da diferença: em Portugal, o actual Estado de Emergência (muitíssimo mais brando) caduca automaticamente a cada 15 dias, tendo por isso, se necessário, de ser sucessivamente renovado pelos órgãos de soberania.

Os atropelos à democracia húngara não começaram com a pandemia do novo coronavírus, todos sabemos. O governo de Viktor Orbán tem sido, na última década, o protagonista da erosão dos valores europeus dentro da própria União Europeia, com excessiva margem de manobra dada pelos seus parceiros europeus (apesar de pontualmente repreendido). É, aliás, longa a lista de manobras de controlo político no país. O partido de Orbán, o Fidesz, colonizou a máquina administrativa do Estado. O Fidesz também alterou a lei eleitoral, de forma a mais facilmente garantir uma super maioria parlamentar (igual ou superior a dois terços) — passou a ser possível com 44% dos votos, quando antes da reforma eleitoral era preciso pelo menos 53% dos votos. Orbán sacrificou a independência dos tribunais e controlou a comunicação social, através de empresas nas quais tem amigos e aliados. E, claro, com a mão a domar o regime, o governo húngaro calou vozes dissonantes em universidades, tomou conta de unidades de investigação, perseguiu jornalistas e organizações não-governamentais que escrutinam a actuação das autoridades húngaras. Compreensivelmente, a Hungria caiu no índice da Freedom House, sendo actualmente o único país da União Europeia considerado apenas como “parcialmente livre”. Ou seja, afirmar que, na Hungria, a União Europeia alberga e financia um regime híbrido (meio-democracia formal, meio-autoritário na prática) deixou de ser um excesso linguístico.

Ora, se os atropelos à democracia húngara não começaram agora, a pandemia fez o regime ultrapassar a última linha vermelha, sobretudo na comunidade de democracias que deve ser a União Europeia. Por isso, a tolerância das instituições europeias e, em particular, o silêncio do Partido Popular Europeu (família europeia do partido de Orbán, mas também de PSD e CDS-PP) aos atropelos democráticos na Hungria tornaram-se insustentáveis.

Essa insustentabilidade resulta das medidas de reforço dos poderes do governo húngaro, claro. Mas não só. No actual contexto de emergência, há que manter em vista o papel da UE: não estão em causa apenas as ajudas económicas aos países em maiores dificuldades, mas também um posicionamento político de defesa da eficácia dos regimes democráticos em momentos de crise. Quando tantos olham com fascínio para o modo como regimes autoritários ou líderes populistas têm contido os efeitos da pandemia, é fundamental sublinhar que as democracias liberais são mais eficazes a proteger a vida das suas populações e a resolver os problemas concretos dos seus cidadãos. Ora, esse necessário posicionamento europeu não é compatível com a actuação das autoridades húngaras. Qualquer resposta ambígua das instituições europeias a este respeito será, portanto, uma derrota na guerra política que se trava nos bastidores do combate ao vírus: a que opõe as democracias liberais aos populismos iliberais. E se a UE sair derrotada, tornar-se-á de facto necessário perguntar para que serve.

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