Recentemente, deparei-me com uma sátira do programa Extremamente Desagradável de Joana Marques, direcionada a Clara Não, cronista do Expresso conhecida pelas suas opiniões controversas e até mesmo radicais. Os duplos episódios sobre a cronista, despertaram uma preocupação crescente em mim, devido a um conjunto de incongruências apontadas por Marques a Clara Não. Intrigado, decidi visitar o Instagram de Clara Não, onde me deparei com a seguinte publicação:
“Já falei aqui de como as mulheres foram ensinadas a serem obedientes, passivas e as eternas cuidadoras, porque “esse é o seu papel”, que inclui vigiarem-se umas às outras. Contrariem esta norma social. Vigiem-se antes a vocês mesmas, no bom sentido, para poderem reparar quando estão a desdenhar de uma mulher só pela cusquice (…)”.
Ao ler isso, percebi que estava perante uma falácia lógica comum: o apelo à emoção. Esta é uma técnica comumente usada pelos teóricos da ideologia para promover suas perspectivas. Estava quase disposto a ignorar, como costumo fazer, mas um vídeo de Matt Walsh me fez entender o perigo de deixar tais declarações sem resposta.
Recentemente, Matt Walsh sofreu a revogação da sua monetização no YouTube, um resultado das políticas nebulosas desta plataforma sobre liberdade de expressão. Adicionalmente, enfrenta perseguição constante e até ameaças de morte devido às suas supostas ideias transfóbicas, episódios perpetuados por aqueles que se autodenominam como ‘ativistas do bem’. Além disso, Walsh e a sua família foram vítimas recentes de um ataque cibernético. Apesar de não estar em total acordo com algumas das posições de Walsh, considero que tais ações contra ele ultrapassam as fronteiras do que é aceitável numa sociedade que se afirma livre e democrática.
Neste artigo, pretendo sublinhar como vivemos numa era onde o debate genuíno está a ser sufocado, realçando o perigo que isso acarreta para a nossa sociedade. Pois, ao contrário do que acontece hoje, ainda cresci na era dos fóruns e blogues, espaços de debate efervescente, onde a liberdade de expressão era tão vasta quanto a liberdade de caracteres. Nesses locais, as ideias eram discutidas e a paciência servia de alicerce para novos paradigmas de pensamento. Hoje, deparamo-nos com câmaras de eco que apenas ecoam aquilo que os algoritmos lhes fornecem. Devido a este fenómeno, as nossas opiniões são moldadas sem que encontremos resistência que promova um questionamento genuíno.
Atrelado a este fenómeno, observo que algumas pessoas da minha geração, os millennials, bem como da Geração Z, parecem presas a um desejo insaciável de gratificação instantânea, evidenciada na troca de ‘likes’. Este comportamento reflecte mais a sua falta de atenção do que uma genuína demonstração dos seus ideais. Deste modo, estamos a criar indivíduos possuídos pela ideologia. Na minha perspectiva, a ideologia tornou-se a boia de salvação dos jovens, e a responsabilidade recai sobre aqueles que não se dão ao trabalho de questionar o que essa ideologia verdadeiramente oculta. Se o fizéssemos, poderíamos surpreender-nos ao descobrir o quão infundadas são certas preocupações.
A título de exemplo, é inegável que, no mundo atual, somos diariamente inundados por um oceano de retórica inflamada, com vozes ‘Woke’ — como aquela de Clara Não — a ecoar através das ondas virtuais das nossas redes sociais. Uma cacofonia constante de alegações de violência e crimes sexuais reverbera pelos corredores do Facebook, Instagram e Twitter, transformando essas plataformas em versões modernas da CNN e da CMTV, palcos de um drama sensacionalista. Porém, por detrás dessa cortina de alegações, a realidade, tal como evidenciada por Steven Pinker em ‘Iluminismo Agora’, é bem diferente: a criminalidade, incluindo os crimes de violência sexual, tem diminuído a olhos vistos. Contudo, no grande palco das redes sociais, não é a verdade que prevalece, mas sim a retórica sensacionalista e o oportunismo.
Nesse mesmo palco digital do século XXI, um influencer do TikTok com dois milhões de seguidores é catapultado para o estrelato, recebendo um megafone para amplificar sua voz, enquanto um cientista renomado é relegado para os bastidores, limitado a rabiscar as suas teorias num avião de papel. Porém o drama é o que se desenvolve nas nossas vidas, visto que a exposição conferida pelo megafone digital serve apenas para promover uma agenda ideológica insidiosa, uma narrativa distorcida que prejudica mais do que ajuda a nossa compreensão coletiva da realidade.
Há cerca de 20 anos atrás, o próprio Pinker enfrentou um tsunami de críticas aquando da publicação do seu livro ‘Blank Slate’. Hoje ele seria completamente cancelado. Nesta obra atreveu-se a desafiar conceitos firmemente enraizados na ciência social contemporânea. Enfatizando o papel fulcral da genética e da biologia na moldagem da personalidade e do comportamento humano, os seus argumentos encontraram grande resistência por parte de um contingente de académicos pós-modernistas e feministas. Apesar disso, Pinker emergiu irredutível, provando a resiliência da verdade na face da controvérsia.
Este poder de persistência, porém, parece ser uma mercadoria escassa quando sentimentos excessivos nublam a nossa racionalidade. Poder-se-ia até dizer que o absurdo tende a tomar conta quando permitimos que a emoção ofusque a análise. Vejamos, a título de exemplo, uma situação quase caricata: alguns psicólogos identificaram um risco mais elevado de contrair doenças em indivíduos canhotos quando comparados com os destros. Embora os autores tenham teorizado explicações plausíveis para o fenómeno, como o predomínio de um mundo idealmente projetado para destros e possíveis diferenças no desenvolvimento cerebral, isso não foi suficiente para acalmar a tempestade de indignação que se seguiu. Cartas ensandecidas, ameaças de morte e até mesmo o ostracismo de certos periódicos científicos foram as respostas dos canhotos e dos seus fiéis simpatizantes.
O que antes seria motivo para uma simples caricatura, hoje assume uma gravidade preocupante quando envolve figuras proeminentes como Richard Dawkins. Este pensador foi uma pedra angular na formação da minha perspectiva intelectual, graças não só às suas obras de divulgação científica, mas também à sua postura francamente crítica e aberta em relação à religião. Nunca deparei com um apelo explícito de Dawkins para o cancelamento da religião ou dos seus seguidores, apesar do seu reconhecido juízo de que estaríamos melhor sem ela. O que sempre presenciei foi um homem íntegro, que expressava as suas ideias e teorias, preparado para um debate aberto com qualquer um que se atrevesse a confrontá-lo. Em determinadas ocasiões, pode ter optado por uma abordagem mais polida nas suas apreciações, atendendo ao respeito pelo puritanismo religioso, sem nunca abandonar, contudo, a essência das suas convicções. Contudo, pouco poderia prever que o seu ‘cancelamento’ viria da facção mais progressista da América, acorrentada a uma geração que procura se sentir especial à sombra de indivíduos verdadeiramente notáveis, que deram contribuições significativas para o nosso progresso.
Contudo, o panorama não se esgota aqui. No mesmo período histórico, o feminismo radical acabou por disparar um tiro inusitadamente contra o seu próprio pé, ao tentar anular uma mulher que desempenhou um papel significativo para todas as mulheres ao redor do mundo: Germaine Greer. Em consequência dos seus comentários acerca dos transgéneros não serem verdadeiras mulheres, enfrentou o ostracismo do grupo que outrora ajudara a edificar. E por que razão? Em nome de uma espécie de ortodoxia de pensamento, em detrimento de um debate sincero e aprofundado sobre a sua posição.
O mesmo sucedeu a Chimamanda Ngozi Adichie quando se referiu ao seguinte: “Quando as pessoas falam sobre ‘as mulheres são isto, as mulheres são aquilo’, muitas vezes estão a referir-se às pessoas que são biologicamente mulheres e que sempre viveram no mundo como mulheres. A minha sensação é que, se você viveu no mundo como homem, com os privilégios que o mundo concede aos homens, e então, por qualquer razão, decide que agora é mulher, é difícil para mim aceitar que depois disso nós possamos equiparar as suas experiências com as de uma mulher que tem vivido desde sempre no mundo como mulher.”
Adichie enfrentou uma imensa reação negativa após estas declarações, e a profundidade do seu raciocínio acabou por não ser devidamente avaliada. Nos dias de hoje, inúmeras atletas mulheres cisgénero treinam arduamente para verem os frutos do seu esforço desvalorizados pela presença de pessoas transgénero na competição. Apesar dos esforços de Joanna Harper (transgénero), que corre (literalmente) para desmistificar as supostas vantagens dos atletas transgénero, a realidade é que Lia Thomas se tornou a primeira pessoa transgénero a vencer a NCAA, com uma facilidade reveladora de vantagem biológica.
Compreendo a complexidade da questão, mas em determinados pontos não podemos permitir que apenas a angústia de alguns seja ouvida. A dor destas jovens atletas que durante anos se dedicaram ao treino também deve ser considerada.
No meu trabalho, muitos dos meus clientes confidenciam que o espaço para o debate tem sido drasticamente reduzido. Apesar das boas intenções e da sua genuína preocupação sobre as temáticas, sentem que algumas das suas inquietações podem ser mal interpretadas pela polícia social da sua geração. Esta situação gera ansiedade, isolamento e, por vezes, uma dicotomia entre a persona que manifestam publicamente e a pessoa que realmente são.
Como psicólogo, observo que esta realidade não se limita aos meus pacientes. Colegas de profissão já me confidenciaram a necessidade de cautela ao lidar com alguns jovens da Geração Z, uma geração que critica o excesso de poder institucional, mas que paradoxalmente detém grande influência. Esta constante ginástica retórica e vigilância geram inúmeros problemas na sociedade. No entanto, a aparente passividade que cultivamos, camuflando a ausência de caráter, torna a inércia uma ameaça maior. Dessa forma, corremos o risco de não confrontar as incongruências alheias, colocando em perigo a coesão de um mundo cada vez mais fragmentado.