Se, em algum momento do passado, tivéssemos a oportunidade de encontrar Zizek e Calligaris juntos num bar, acredito que ambos estariam a brindar divertidamente sobre a vida e a concordância sobre algo “prefiro uma vida interessante a uma vida feliz”. E continuariam livres dos ditames da sociedade contemporânea, que nos empurra para uma vida amorfa através da positividade.

Era comum antigamente entrar nas livrarias e ver o péssimo trabalho de encadernação das editoras, mas o que mais me atraía era o recheio dos livros. Hoje em dia as editoras fazem um excelente trabalho de capa, onde o arco-íris das corres berrantes dos livros parecem promissores, tais como as suas palavras “f*** para aqui”, “dê um f***-se para a sua vida”, “seja o maior da sua aldeia em 30 passos”, “como atingir o nirvana sem nunca ter escalado”, etc.

Além do culto do individualismo, existe uma excessiva preocupação em nos dar a certeza de que existe uma fórmula certa e mensurável para a vida. Apesar de acreditar que existam formas mais adequadas de viver a vida, custa-me acreditar que existe uma fórmula certa. Todavia esse é o problema da nossa sociedade. Vivemos numa sociedade do sempre igual, ou que deseja o sempre igual e isso é passível de se verificar através das redes sociais. Encontro imensas pessoas que sofrem por não ter uma vida semelhante à dos influencers das redes sociais. E o que é que esses influencers espelham? Uma vida absolutamente igual. E para além de uma vida aparentemente igual, apenas espelham os elementos positivos, afirmativos e optimistas.

Quando questiono os meus clientes acerca do porquê de quererem viver como aqueles influencers, eles respondem-me prontamente que é devido ao facto de estes terem uma vida perfeita. No entanto o que eles não sabem é que esses influencers estão constantemente em performance. Digo-lhes que isso faz parte de um yin-yang perverso dos media. De um lado temos a televisão sensacionalista e de outro lado sempre tivemos as revistas cor-de-rosa cobertas de tonalidades luxuriantes, mas igualmente aberrantes.

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Dessa forma, quando me perguntam qual a chave para a vida, aguardo uns segundos e em tom de suspense, olho para o horizonte como se estivesse a pescar a melhor frase de sempre, encaixo os óculos enchendo o peito e de repente solto um “não sei!”. De repente tornei uma expressão tão ambígua cliché, não foi? Mas realmente eu não sei. Aliás como ninguém sabe verdadeiramente. É um facto que temos umas luzes, mas não é certamente para onde andamos a apontar neste momento. Carl Jung dizia que “nós não nos tornamos iluminados ao imaginar figuras de luz, mas sim ao tornar a sombra consciente. Porém, esse procedimento é desagradável, portando, não popular”. O que é que isto significa? Que não é através de pensamentos positivos, vazios e ‘standarizados’ que iremos atingir a sabedoria. É precisamente por isso que afirmo os limites dos livros de autoajuda. Eles só refletem aquilo que nós queremos que eles reflitam. Eles não nos mudam verdadeiramente, pois eles só reafirmam aquilo que muitas vezes nós procuramos neles.

Por isso é que Jung afirma que nós podemos atingir a sabedoria se tornarmos a nossa sombra consciente. E o que é a sombra? São aqueles conteúdos que não estão iluminados pela luz da consciência, claro. E não estão iluminados porque os rejeitamos, porque nos magoam, diminuem o nosso Ego ou temos medo de os enfrentar. Na maioria das vezes essa sombra reflete-se nas nossas relações. Por isso afirmo tantas vezes que devemos estar atentos àquilo que nos irrita numa pessoa, porque podemos estar a olhar para um reflexo de nós mesmos. Todavia, estamos mais afastados do que nunca das relações. Vejam a política do cancelamento, do politicamente correto e do puritanismo que só permite a entrada do positivo, do polido, daquilo que não dói. Qual Era Vitoriana qual quê? Ao lado da nossa sociedade Freud poderia rir-se e admitir o quanto regredimos em dimensões psicológicas.

É sobre isto que Byung-Chul Han escreve acerca da agonia de Eros. Segundo Han, Eros representa o Deus do amor, do erotismo, do desejo, da intimidade, da sexualidade, da afetividade e da relação. Contudo, por vários motivos ele está agoniado, triste e cada vez mais afastado da nossa sociedade. Mas como isso pode acontecer se somos a sociedade mais progressista de sempre? Veja-se, por exemplo, através das polarizações ideológicas que não têm jeito de se relacionar… estamos cada vez mais fechados em bolhas grupais e afastados dos divergentes. Damos vozes às nossas emoções, mas não nos relacionamos com o diferente, porque essas bolhas nos tornam todos iguais, ou seja, amorfos. É por isso que Eros vive agoniado. Tornamo-nos bolhas de cristal, altamente polidas e brilhantes. Diminuímos assim a alteridade e o outro que ousa penetrar e sujar a minha bolha. O próprio sexo fica vazio e diminuído ao estímulo do igual e monótono da mesma bolha.

Perde-se o mistério, perde-se a sedução, perde-se a alteridade, perde-se o desconhecido e perde-se também a oportunidade de o mapear, de o tornar conhecido, de o tornar sabedoria. Essa verdadeira dança de erotismo. O Eros está a desparecer porque somos ingénuos, puritanos a acabar com ele.

No outro dia um homem virgem de Eros afirmou-me “mas João vivemos numa sociedade que não valoriza a honestidade, não valoriza a sinceridade… Se eu sou sincero e digo o que vier à cabeça, tenho de seguida a cabeça a prémio”. Ao qual respondi “é verdade… Mas quem diz que por vezes da nossa cabeça não vem diretamente uma descarga de merda? Aliás, esse é o problema. Nós estamos tão enviesados que nem filtramos mais aquilo que nos corre na cabeça. Quer saber mais? Isso é de uma ingenuidade, de uma irresponsabilidade profunda! Porque por vezes só estamos a fazer com que o outro se responsabilize sentimentalmente pela nossa estupidez”. Ele ficou visivelmente pensativo. Continuei “Perguntou-me como criar relações íntimas, certo? Porque não dar um tempo? Efetivamente conhecer a pessoa, ter calma e se achar que ela é merecedora, manifestar a sua vulnerabilidade.” “Vulnerabilidade?!”, perguntou ele com espanto. “Sim vulnerabilidade” respondi e continuei, “sente mais confiança num chefe que é implacável e se desresponsabiliza sempre pelos seus erros, ou por um chefe que seja capaz de assumir o seu erro e falar abertamente sobre ele, incluindo perspetivas de melhoria?”.

Ele optou pelo segundo. Porque, sim, erros existirão sempre, mas na sociedade atual nós só manifestamos o lado A da coisa e nunca o lado B. Tornamo-nos intolerantes, porque a própria sociedade se tornou uma espécie de pai intolerante ao qual tentamos sempre responder de forma perfeita, exímia, mas nunca suficiente. Consequentemente, agimos com brutalidade, agimos com confiança, agimos com honestidade quando elevados na nossa bolha pela câmara de eco. Julgamos que é essa sinceridade brutal acerca dos nossos sentimentos que podem conduzir a uma relação fidedigna. Mas desde que ela seja unilateral. Desde que não sejamos o elemento passivo. Não manifestamos mais a nossa vulnerabilidade, pois ela é encarada como uma fraqueza. Sabem o que deveria ser encarado como uma fraqueza? Por exemplo universitários que não leem um livro clássico durante a sua licenciatura. É essa iliteracia que nos deveria envergonhar. Não são os estatutos que nos elevam na relação, mas sim a experiência.

Recebo imensos jovens e adultos deprimidos por comparação a essa vida positiva. Deixo jovens e adultos mais leves por só lhes entregar uma bússola e um mundo por explorar.

Todavia algures por aí alguém se despediu deste mundo dizendo “estou farto de não ser suficiente”. Assinou com o nome de Eros.

PS: Este texto serve de homenagem a Anthony Stevens, psiquiatra britânico que tentou tornar o nosso mundo um lugar mais sábio. Ele uma vez escreveu: “Os meus pacientes trouxeram-me tão perto da realidade da vida humana que não pude deixar de aprender coisas essenciais com eles. Encontros com pessoas de tantos tipos diferentes e em tantos níveis psicológicos diferentes foram para mim incomparavelmente mais importantes do que conversas fragmentadas com celebridades.