1 Gostaria de celebrar aqui enfaticamente o anúncio, na quarta-feira passada, da nova aliança estratégica, militar e tecnológica, entre a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos da América. Chama-se AUKUS, juntando as iniciais dos três membros (AUstralia, UK, US).
É uma grande notícia para os defensores da democracia liberal. E é sobretudo bem-vinda depois da deprimente — e, como tenho enfaticamente argumentado aqui, totalmente desnecessária — retirada americana e ocidental do Afeganistão. As grandes democracias da região do chamado Indo-Pacífico — Índia, Japão e Coreia do Sul, entre outras — saudaram de imediato a iniciativa. Vários analistas têm justamente sublinhado que a AUKUS vem reforçar a aliança da democracias no Indo-Pacífico — o que desejavelmente deverá ter impacto dissuasor na muito atrevida (para dizer o mínimo) política expansionista da ditadura comunista chinesa na região.
2 Lamentavelmente, porém, a nobre democracia francesa respondeu de forma totalmente disparatada, chegando ao ponto de chamar a Paris os seus embaixadores na Austrália e nos EUA. São certamente compreensíveis e respeitáveis algumas das razões de queixa da França — sobretudo o facto de o projecto AUKUS não ter sido atempada e devidamente informado à França e à União Europeia. (Parece que há também uns problemas de negócios sobre submarinos que, sendo respeitáveis, não são seguramente justificação para retirar embaixadores de cruciais Embaixadas aliadas).
Mas é sobretudo totalmente descabido comparar o lançamento da AUKUS à errática política isolacionista do sr. Trump. Em vez de isolacionismo, o que está aqui a ser esboçado é o reforço e ampliação de uma aliança das democracias à escala global.
3 Importa sublinhar este ponto do reforço e ampliação de uma aliança das democracias à escala global. Ele deve ser recordado à nobre democracia francesa e à nobre União Europeia. Mas deve ser também sublinhado a algumas vozes no Reino Unido que, tendo justamente apoiado a AUKUS, estão agora a usar a iniciativa para criar animosidade contra a França e a União Europeia.
Segundo algumas dessas vozes, as democracias da Europa continental não seriam confiáveis — pelo que, sugerem ou mesmo afirmam, — uma aliança autónoma dos países de língua inglesa (a chamada “Anglosphere”) deveria ser promovida, em ruptura com as democracias continentais. Em regra, estas vozes gostam de citar Winston Churchill. Mas receio que as citações não sejam exactas.
4 Vale a pena revisitar aqui brevemente o posicionamento de Winston Churchill. Ele certamente acreditava que havia uma forte especificidade na cultura política marítima dos povos de língua inglesa — um especial apego à liberdade, associado a um forte sentido de honra e de dever, como Karl Popper gostava de me recordar repetidamente. É absolutamente incontornável que Churchill dedicou 25 anos a preparar um livro (entre os mais de vinte que escreveu) sobre a História dos Povos de Língua Inglesa (cujo primeiro de quatro volumes só foi publicado em 1956).
Mas nem Churchill nem Popper alguma vez aceitaram separar as tradição da liberdade dos povos de língua inglesa da mais vasta tradição da liberdade europeia e ocidental — com as suas raízes plurais em Atenas, Roma e Jerusalém.
5 Essa separação terá sido particularmente tentadora para Churchill, sobretudo após a vitória na II Guerra, em que muitos dos seus concidadãos queriam punir a Alemanha. Compreendendo embora essa tentação, Churchill recusou-a sempre liminarmente. Ficou célebre a sua intervenção no Parlamento britânico a 5 de Junho de 1946:
“Crimes indescritíveis foram cometidos pela Alemanha sob o poder nazi. A justiça deve fazer o seu caminho, os culpados devem ser punidos, mas, uma vez esse processo terminado — e confio que em breve estará terminado — eu recordo as palavras de Edmund Burke: ‘não posso fazer uma acusação contra todo um povo’.
“Devemos proclamar sem medo: Deixemos a Alemanha viver. Deixemos a Áustria e a Hungria serem livres. Deixemos a Itália retomar o seu lugar no sistema europeu. Deixemos a Europa levantar-se de novo em glória e pela sua força e unidade garantir a paz no mundo.”
6 No famoso discurso na Universidade de Zurique, a 19 de Setembro de 1946 (em cujo cinquentenário, a propósito, tive o prazer e o privilégio de participar), Churchill foi ainda mais longe. Ele simplesmente defendeu que a reconstrução da Europa deveria ser fundada na reconciliação entre a França e a Alemanha:
“Vou agora dizer uma coisa que vos vai deixar estupefactos. O primeiro passo na reconstituição da família europeia tem de ser uma parceria entre a França e a Alemanha. Só desta forma pode a França recuperar a liderança moral na Europa. Não poderá haver renascimento da Europa sem uma França espiritualmente grande e sem uma Alemanha espiritualmente grande.”
7 É certo que Churchill defendeu tudo isto sempre assumindo que o Reino Unido ficaria de fora da grande parceria europeia. Mas o ponto aqui é que ele foi promotor da União Europeia, não adversário. E foi sobretudo grande promotor da NATO, a aliança euro-atlântica. Seguramente também defendeu enfaticamente a “special relationship” com os EUA e com os povos de língua inglesa, sobretudo Canadá, Austrália e Nova Zelândia (que hoje constituem os muito respeitáveis “Five Eyes”). Mas sempre como parceiros, não como rivais, da global aliança das democracias liberais.
8 Em suma, creio que devemos saudar o lançamento da AUKUS — como reforço e ampliação de uma aliança das democracias à escala global, não como pretexto para tribalismos iliberais.