A história está cheia de ditadores e tiranos que ganharam eleições. Não faltam exemplos de Putin a Salazar, de Kim Jong Un a Estaline ou Hitler. Alguns até começaram por ser efetivamente eleitos pelo voto popular, para depois se manterem no poder pela força. No entendimento que, por enquanto, prevalece na Europa, para haver uma verdadeira democracia é preciso que as eleições sejam livres e justas. Mas também é necessário que os líderes eleitos não se transformem em tiranos, ou seja, respeitem as leis e os limites do seu poder. Entre os limites mais importantes está o do tempo, a aceitação da sua substituição pacífica. Biden não se devia ter recandidatado, mas pelo menos saiu quando percebeu que a grande maioria dos americanos queria outra alternativa. É isto que vai mais uma vez estar em questão nos próximos dias e meses.

Breve história do autogolpe

Pode parecer um paradoxo falar de autogolpe, ou seja, de um golpe do poder executivo. Mas não é. Foi o que fez, por exemplo, o mais importante líder brasileiro do século XX, o populista Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937. Presidente desde 1930, Vargas decidiu usar a sua autoridade sobre as Forças Armadas e de Segurança para concentrar todo o poder, mudar de constituição, e iniciar o regime autoritário do Estado Novo brasileiro. Um exemplo clássico de autogolpe é o de Luís Napoleão Bonaparte, em França. O episódio até deu origem a um dos mais famosos ensaios de Karl Marx: O 18 de Brumário de Luís Napoleão. Sobrinho do famoso imperador e herdeiro político do bonapartismo, Luís Napoleão foi o primeiro Presidente da República Francesa a ser eleito diretamente. Em 10 de dezembro de 1848 teve mais 5 milhões de votos do que o seu adversário. Mas a constituição apenas permitia um mandato único, pelo que teria de abandonar o poder em 1852. Em vez disso o Presidente-Príncipe usou a sua autoridade sobre as Forças Armadas e a sua popularidade para se transformar no imperador Napoleão III. Como outros populistas apostou numa política externa de nacionalismo agressivo e errático, que culminou na guerra franco-prussiana de 1870, e na sua derrota, prisão, deposição. O Golpe Comunista de Praga de 1948 é outro exemplo de um autogolpe, usando o controlo do aparelho de segurança do Estado para impor uma mudança de regime. Em suma, é fundamental não presumir que um regime democrático com eleições livres e verdadeiras alternativas é algo que durará sempre. Ou que os inimigos da democracia são incapazes de usar eleições para chegarem ao poder para depois mais eficazmente subverter um regime de liberdades.

Umas eleições americanas 

Esta história vem a propósito de quê? Evidentemente das eleições presidenciais que se aproximam na América. Mais concretamente na América do Sul, onde a Venezuela terá eleições presidenciais no próximo domingo 28 de julho. Não me digam que pensaram que estava a falar da América do Norte? Podia realmente ser, tem toda a razão o leitor atento que assim pensou. Realmente Donald Trump, com o assalto ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, tentou uma variante de autogolpe. Encorajou uma turba violenta que acabou a gritar ameaças de morte e a tentar coagir congressistas e o Vice-Presidente Pence a darem a Trump uma vitória que não teve nas urnas, perpetuando-se no poder. É por isso que muitos dirigentes históricos Republicanos deixaram claro que nunca votariam em Trump.

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Mas deste vez quero sobretudo a falar de Nicolás Maduro, o herdeiro político do coronel golpista Hugo Chavéz. Este último tentou um golpe militar em 1992 que falhou. Mas, em 1999, acabou por conquistar o poder pela via eleitoral com um populismo politicamente muito eficaz. No final da sua vida Chávez era cada vez menos querido e cada vez mais repressivo. Mas foi Maduro, que nunca foi muito popular, quem, a partir de 2013 avançou com afinco na obra de destruição daquela que foi a mais próspera economia e uma das mais consolidadas democracias da América Latina. Hoje, tragicamente, a Venezuela tem uma economia que é 1/3 do que era há 10 anos atrás. O país só é líder em reservas de petróleo, que não consegue explorar devidamente, e no número global de refugiados, pois 8 milhões de venezuelanos fugiram do país.

O grave nas eleições presidenciais deste domingo é que Maduro, depois de ter impedido a candidatura da popular candidata da oposição, ameaçou com um “banho de sangue” e uma “guerra civil” se ainda assim perder. Mesmo o Presidente Lula do Brasil, depois de anos a desculpar o camarada Maduro, parece ter perdido a paciência. É sempre mais fácil apontar erros aos outros, difícil é fazê-lo no nosso campo político. A maioria não o faz. Os inimigos da liberdade são sempre os outros, apesar de não faltarem na história ditadores de direita e de esquerda radicais. Mas desta vez Lula disse ter ficado “assustado” com as declarações de Maduro, e afirmou que este último tinha, finalmente, de perceber que em democracia “quando você perde vai-se embora”.

A retórica e a autocracia em rede

Vamos provavelmente assistir a uma fraude sem precedentes pelo regime chavista. E se isso não for suficiente teremos provavelmente uma repressão de uma brutalidade sem precedentes na Venezuela. Os venezuelanos parecem querer mudança. Mas o problema é que como Anne Applebaum muito descreve no seu mais recente ensaio – Autocracy Inc. – Maduro e o seu regime podem contar com a cumplicidade e os serviços de contrabando, repressão e vigilância de uma rede global de autocratas que vai da China até à Rússia, do Irão até Cuba, para continuar a reprimir o povo venezuelano com impunidade, enquanto a elite do regime continua a enriquecer. Acabadinho de sair, mas difícil de parar de ler, esta obra de Applebaum é uma leitura indispensável de verão,

Será que a ameaça de Maduro não é para cumprir? É só fumaça política? Maduro pode aceitar uma derrota sem fraude, e fazê-lo de forma graciosa e pacífica. Trump pode voltar à Casa Branca e revelar-se um estadista respeitador da Constituição e um aliado fiável. Quase tudo é possível em política. Mas em política as palavras também contam. Por regra é com base no fazem mas também no que nos dizem os líderes políticos que os avaliamos. E é inaceitável numa democracia ter-se qualquer tipo de complacência ou cumplicidade com a violência se não se gostar do resultado de uma eleição. Em suma, é difícil imaginar defesa mais fraca de um político, de qualquer político, de esquerda ou de direita, do que argumentar que o que ele diz não é para ser levado a sério.