O Kremlin, desta vez, foi mais cuidadoso ao revelar as suas preferências no que respeita aos dois candidatos a Presidente dos Estados Unidos e não se apressa a dar os parabéns a Joe Biden. As expectativas não são muito radiantes, mas os dirigentes russos nutrem algumas esperanças em que seja possível melhorar as relações russo-americanas.

Vladimir Putin e os seus porta-vozes insistiram em sublinhar que a Rússia irá trabalhar com o vencedor das eleições presidenciais norte-americanas, quer seja Donald Trump, quer fosse Joe Biden.

Numa entrevista concedida a um dos canais de televisão russa, Putin revelou aquilo que, segundo ele, poderia servir de base para a cooperação com o novo dono da Casa Branca. Como parece ser um facto adquirido de que Joe Biden é o vencedor, vale a pena recordar o que ele disse a propósito do Presidente eleito: “Quanto ao candidato democrata, o que posso dizer? Também podemos ouvir uma retórica anti-russa bastante aguda. Infelizmente, nós já nos acostumámos a isso. Mas vale a pena mencionar algumas coisas. Em primeiro lugar, o Partido Democrata está tradicionalmente mais próximo dos chamados valores liberais, mais próximo das ideias da social-democracia, comparando-se à Europa. E foi a partir do meio social-democrata que o Partido Comunista evoluiu.

Afinal, fui membro do Partido Comunista Soviético durante quase 20 anos, ou mais precisamente 18 anos. Eu era membro de base, mas pode-se dizer que acreditava nas ideias do partido. Ainda gosto de muitos desses valores de esquerda. Igualdade e fraternidade. O que há de ruim neles? Na verdade, eles são semelhantes aos valores cristãos. Sim, eles são difíceis de implementar, mas são muito atraentes, no entanto. Por outras palavras, isso pode ser visto como uma base ideológica para desenvolver contactos com o representante democrata.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É um facto que os afro-americanos constituem um eleitorado estável, um dos eleitorados do Partido Democrata. É um facto bem conhecido e não há nada de novo nisso. A União Soviética também apoiou o movimento dos afro-americanos pelos seus direitos legítimos. Na década de 1930, os líderes da Internacional Comunista escreveram que tanto os trabalhadores negros quanto os brancos tinham um inimigo comum: o imperialismo e o capitalismo. Eles também escreveram que essas pessoas poder-se-iam tornar o grupo mais eficaz na futura batalha revolucionária.

Então, isso é algo que pode ser visto, até certo ponto, como valores comuns, senão um agente unificador para nós. Não tenho medo de dizer isto. Isto é verdade”.

Putin, dirigindo-se ao entrevistador, remata com uma ponta de nostalgia: “Você lembra-se — bem, você é um homem jovem, mas as pessoas da minha geração recordam-se de uma época em que enormes retratos de Angela Davis, membro do Partido Comunista dos Estados Unidos e uma ardente lutadora pelos direitos dos afro-americanos, estavam afixados em toda a União Soviética.”

Lirismos e declarações de amizade e cooperação à parte, essas palavras do Presidente russo mais não escondem do que uma indefinição face ao futuro das relações entre os dois presidentes e países.

Era evidente que a maior parte da elite política russa preferia continuar a ver Donald Trump à frente da Casa Branca, embora as relações entre a Rússia e os Estados Unidos tenham atingido um nível tão baixo como nalguns momentos complicados da “guerra fria”. O Kremlin soube aproveitar a política de Trump de afastamento dos EUA dos seus aliados europeus, de menor intervenção nos assuntos internacionais. Além disso, também tirou proveito das acções extravagantes do ainda Presidente norte-americano para desacreditar a democracia junto da opinião pública russa e internacional.

Por outro lado, Moscovo não esconde o seu descontentamento com o facto de Trump ter “destruído quase todo o sistema de segurança internacional” ao abandonar importantes tratados que limitam a corrida aos armamentos estratégicos, bem com o facto de o dirigente norte-americano ter declarado novas sanções contra a Rússia e tudo fazer para impedir a conclusão do gasoduto North Stream-2, que liga os poços gasíferos russos à Alemanha através do Mar Báltico.

É precisamente nestes sectores que Putin espera conseguir estabelecer um diálogo positivo com Joe Biden. O Presidente eleito norte-americano é um político muito ligado às questões do desarmamento e, durante a sua campanha eleitoral, prometeu, nomeadamente, prolongar o tratado sobre armamentos estratégicos (New Start).

Concluído em 2010, o tratado expira no início de 2021 e as negociações sobre a sua renovação encontram-se num impasse há meses. O acordo mantém os arsenais de ambos os países bem abaixo dos níveis da “guerra-fria”, limitando o número de lançadores nucleares estratégicos a 700 e o número de ogivas nucleares a 1.550.

Moscovo espera também que Biden não continue a levantar obstáculos à conclusão da construção do North Stream-2, considerando que o Presidente eleito não está ligado ao lobby norte-americano do petróleo e gás. Além disso, o Kremlin espera que a questão da “ingerência russa” na vida política americana passe para segundo plano.

Por outro lado, há numerosos motivos para recear que Biden seja uma “dor de cabeça” ainda maior do que Trump para Vladimir Putin. Tradicionalmente, os dirigentes russos têm mais facilidade em conversar com os republicanos do que com os democratas norte-americanos. Além disso, é grande o receio de que os Estados Unidos e a União Europeia voltem a fortalecer as suas relações no âmbito da NATO a fim de fazer frente à política expansionista de Moscovo.

“É claro que, hoje, se sentem inspirados todo o mundo liberal, os aliados dos Estados Unidos e todos os que apostavam na não indiferença da última superpotência. Por isso, com a vitória do democrata pode esperar-se a desforra de todas as forças não conservadoras em todo o mundo. Isso significa: mais russofobia na Europa, mais mortes em Donbass e em muitos outros pontos quentes do mundo, mais sanções por razões políticas, isto se falarmos das consequências directas e mais simples” – considera o senador Konstantin Kossatchov, presidente do Comité para Assuntos Internacionais do Conselho da Federação (Câmara Alta do Parlamento) da Rússia.

O Kremlin receia também que Joe Biden normalize as relações entre os Estados Unidos e a China, o que lhe permitirá concentrar mais atenção na Rússia.

Por isso, mesmo que as relações entre os Estados Unidos e a Rússia melhorem, o processo irá ser complicado, com altos e baixos, porque, além da política de Biden, alterações a ocorrer na situação interna na Rússia poderão influir no diálogo bilateral.

P.S.  As confusões e divergências ocorridas durante a corrida eleitoral norte-americano estão a ser utilizados para denegrir a democracia e o pluralismo. A elite política russa não se cansa de afirmar que o sistema político no seu país é mais democrático do que nos Estados Unidos, o que está longe da verdade. Embora se chame Federação da Rússia, os russos só podem invejar o federalismo existente nos EUA. Não espanta também a reacção de Alexandre Lukachenko, ditador bielorrusso, que afirmou: “Olhai para o que está a acontecer com essas eleições. Isso é uma vergonha, é um insulto da democracia… Trata-se de uma comédia e de um insulto para toda a democracia. E ainda bem que isso aconteceu porque vimos a essência dessa democracia. Paleio. No mundo respeitam só os fortes e os que podem resistir até à morte. Nós iremos resistir”. Não vale a pena comentar…