O bombardeamento indiscriminado de cidades sem alvos militares concretos, atingindo e eliminando quase exclusivamente civis, edifícios de habitação e comerciais, hospitais e creches, escolas e zonas de lazer, pode ser considerado um crime de guerra? E mais concretamente um crime de genocídio?

Para esta pergunta existem várias respostas. A daqueles que entendem que todo o dano a um alvo civil, propositado ou aleatório, constitui um crime – o que equivale praticamente a considerar que toda a guerra é ela própria um crime, o que não repugna – e aqueles que, entendendo que o nosso nível civilizacional como humanidade, ainda não atingiu uma maturidade suficiente para afastar a guerra como um modo de continuar a politica por outro meio,  sensatamente pretendem pelo menos, regular os actos de guerra, criando as regras possíveis no meio de situações em que por hábito, vale exactamente tudo menos regras.

Essas normas só têm algum efeito, se forem acordadas entre Estados e no âmbito de uma organização multilateral como as Nações Unidas e pressupõem que os Estados militarmente mais poderosos, se autolimitem a cumpri-las, ou porque os seus dirigentes e especialmente os seus militares assumam esse compromisso ou porque as respectivas opiniões públicas os forçam a tal. Esta é a realidade e pensar fora da realidade nesta matéria é inútil.

Foi por esta via realista do que era possível consagrar na lei internacional, que há 75 anos, na sequência do horror inaudito da II Guerra Mundial, se redigiram e aprovaram os principais instrumentos de regulação dos crimes de guerra. No final da década de 1940 ocorreu a negociação, nessa altura com sucesso, de vários acordos multilaterais, entre estes a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção sobre o Genocídio e a Terceira e Quarta Convenções de Genebra, estas últimas com significativas melhorias quanto às proteções a civis atingidos por conflitos e em territórios ocupados.

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No que se refere especificamente à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, ela foi adotada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1948, como Resolução 260 da Assembleia Geral. A Convenção entrou em vigor em 12 de janeiro de 1951. Para que não existam grandes expectativas na similitude entre “vitimas civis atingidas por conflitos” e “vitimas de genocídio”, importa ter presente que a Convenção sobre o Genocídio estabelece o que pode ser considerado genocídio e que preenche os requisitos desse crime, isto é, o acto tem de ser cometido com intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como o assassinato de membros desse grupo, a submissão desse grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física total ou parcial e medidas tendentes a impedir os nascimentos no seio do grupo.

Exemplo acabado disto é exacta e incontestavelmente o Holocausto nazi sobre o povo judeu, pois preenche todos esses requisitos, que vieram mais tarde a ser consagrados na Convenção. Já antes, no inico do Sec. XX, embora nesse caso não exista unanimidade na apreciação, a Turquia terá feito o mesmo com os arménios e os casos mais recentes, dos muçulmanos na Bósnia ou o também incontestado genocídio dos Tutsi pelo Hutu no Ruanda, preenchem os requisitos do crime de genocídio.

As práticas da Rússia na Ucrânia, conhecidas até à data, ainda não parecem preencher os requisitos do crime de genocídio, sem prejuízo de poderem ser crimes de guerra específicos, como em Bucha, onde se aproximam mais do crime de homicídio (do qual devem ser punidos os respectivos autores materiais e morais, tudo indica que já identificados aliás) que propriamente de um crime de genocídio.

A estratégia militar russa, já comentada por dezenas de observadores especialistas, consiste em massivos bombardeamentos de cidades destruindo tudo o que for possível, causar o maior dano para aterrorizar a população civil, forçando-a a fugir e de seguida, atacar por terra as forças de defesa que ainda permaneçam no terreno. Aliás é uma repetição da táctica usada na Chechénia em 1999, que permitiu depois, a entrada de militares e veículos de guerra no terreno destruído pelas bombas.

Quando na presença de uma guerra em pleno curso, se começa a discutir quais os bombardeamentos “legítimos” e os que são “crimes de guerra”, entramos numa análise plena de imprecisão, subjectividade e ainda que compreensível, de pura emoção. O que convenhamos, não é o mais aconselhável. Senão, vejamos alguns exemplos:

Em Maio de 1940, sem que com essa acção se vislumbrasse algum objectivo militar, mas como meio de pura pressão para os holandeses se renderem, a força aérea alemã devastou o centro histórico de Roterdão, matando cerca de 900 pessoas e criando 80.000 desalojados.

Mas por seu turno, em Fevereiro de 1945, igualmente sem um objectivo militar visível e a dois meses da rendição alemã, os aliados bombardearam Dresden com engenhos incendiários, aniquilando no mínimo 35.000 civis.

Em Março de 1945 a aviação americana bombardeou Tóquio causando com isso o maior número de vitimas da História num único bombardeamento de uma cidade, mais de 100.000 mortos e um milhão de desalojados. As principais vítimas foram civis, mas a ação tinha como objetivo destruir a capacidade produtiva dos principais centros urbanos japoneses. No caso de Tóquio, grande parte de suas fábricas, incluindo as de armamento, ficavam no meio das áreas residenciais e comerciais. Como classificar este acto de guerra?

Em Agosto de 1945 como é sabido, tendo sido considerado imprescindível para que não fosse necessária  uma invasão convencional do Japão que provocaria milhões de mortos, os EUA optaram pelo uso das primeiras e até hoje únicas bombas nucleares lançadas, sobre as cidades de Hiroxima (que nem era o alvo e foi escolhida já em pleno voo e à última hora por razões meteorológicas )  e Nagasaki (essa sim alvo industrial) causando em cada uma mais de 75.000 mortos imediatos, nunca se sabendo ao certo quantos vieram a falecer depois. Se a decisão, ponderados os custos previsíveis da alternativa, foi justificada ou não, é uma discussão infindável, pois que ainda perdura 80 anos depois.

O bombardeamento de cidades pejadas de civis, seja por meios aéreos ou por artilharia terrestre, ficará sempre numa estreita fronteira entre o tradicional actus belli e o crime de guerra. Sobre bombardeamentos aéreos, há um passado pouco conhecido que justifica relembrar: durante o bombardeamento da Alemanha pelos aliados na II Guerra, existiu uma grande divergência entre os aliados quanto ao modo de o fazer. Os americanos pretendiam que a aviação fizesse apenas bombardeamento de precisão, apesar da fraca tecnologia desse tempo. Portanto tinham de bombardear de dia. Os ingleses nunca deram prioridade a isso. Faziam bombardeio de área. As bombas eram para cair na cidade alvo e pronto. Portanto, bombardeavam de noite. Com esta opção, as baixas americanas eram enormes comparadas com as britânicas. Resultado: os americanos passaram a bombardear de noite e disseram adeus à precisão dos alvos.

O bombardeamento é sempre desumano e o bombardeamento indiscriminado ainda mais. É o que a Rússia está hoje a fazer na Ucrânia, mas o que não lhe falta são incontáveis antecessores e em guerras não muito antigas.

A classificação de um crime de guerra tem de consistir numa avaliação objectiva sobre o acto em si. Não deve depender da condição de quem o pratica. Se assim não for, então não estamos a avaliar a qualidade do acto, mas a qualidade do acto em função de quem é perpetrador.

Não deixa de ficar sempre uma má consciência sobre tudo isto, sobretudo quando estamos perante governantes democráticos, forçados a uma guerra que não iniciaram.

Quando no final da II Guerra ocorreu a parada da vitória em Londres, o único comandante das forças armadas britânicas que não foi convidado por Churchill para a tribuna de honra, foi exactamente Arthur Harris, o líder do Comando de Bombardeiros da RAF, que apesar da enorme importância da sua determinação e competência de comando na RAF e na vitória aliada, estava necessariamente ligado ao muito recente bombardeio de Dresden, aliás autorizado por quem depois não o convidou. Provavelmente porque pareceria muito mal convidá-lo. Isto em 1945, quando ainda não existia televisão e muito longe se estava sequer de sonhar com Facebook e Twitter.