“Se pudesse, anexava as estrelas”, dizia Cecil Rhodes, na idade do ouro do império britânico, que, naturalmente, passou a incluir a Rodésia. Não quero entrar na vexata quaestio dos males e bens do imperialismo britânico. Acontece apenas que, para Cecil Rhodes, era possível anexar imensas regiões de África, o que, de facto, se passou. As estrelas eram o impossível limite. Em contrapartida, parece singularmente difícil a Vladimir Putin anexar realmente alguns oblasts da Ucrânia, como os de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia. Putin fica muito abaixo do céu estrelado. As populações não o parecem querer e o exército ucraniano recupera, dia após dia, novas zonas das regiões. As tropas invasoras russas fogem, depois de aterrorizarem os habitantes. O fracasso é inevitável.

Há, como se sabe, sonhos que entram em choque com a realidade. Eu, por exemplo, tenho um típico sonho de velhote: anexar Scarlett Johansonn e uma ilha grega, de um só golpe. Parece-vos impossível? A mim, confesso, também se me afigura difícil, até porque tenho alguma experiência de falhanços no capítulo. Mas também guardo com prazer a memória de alguns sucessos inesperados e, sobretudo, a tarefa parece-me muito mais viável do que a de Putin. Ter Scarlett Johansonn (e uma ilha grega) é uma brincadeira de menino de coro comparada com a ambição de Putin. E, se pudesse organizar um referendo à minha maneira, as pedrinhas todas da ilha deserta votavam por mim e a bela Scarlett esquecia num ápice a pura e simples existência do pobre Colin Jost (tive de ir ver o nome à Wikipédia, coitado dele), movida por um acordo irreprimível com a ordem secreta da natureza e com a mais profunda vocação espiritual da espécie humana. O Observador perderia sem dúvida um colunista das quintas – a felicidade ininterrupta não interessa a ninguém –, mas há sacrifícios inescapáveis. Pensem que também um dia Marcelo deixará de ser Presidente. Há egoísmos que só podem honrar a nossa espécie e é bela a satisfação vicária com a felicidade alheia – sobretudo a minha.

De qualquer maneira, o verdadeiro assunto da coluna de hoje é – tenho mais pena do que posso dizer – mais prosaico. Desde 24 de Fevereiro que se ouvem um pouco por todo o lado vozes (sem o grave veludo adamascado protector da intimidade da alma da minha companheira de ilha) que proclamam insistentemente que a guerra da Ucrânia se iniciou por um ataque insidioso do Ocidente à Federação Russa, em flagrante violação da ordem natural das coisas. O Ocidente teria mobilizado todas as suas forças para destruir os restos de civilização que se lhe opõem. Putin ter-se-ia limitado a reagir. Ora, segundo todas as aparências, tudo isto parece uma inversão caracterizada das relações causais efectivas, patentes aos olhos de todos. Como é isto possível?

Nestes casos, não há nada como ir às fontes. E a fonte principal na matéria é, é claro, o quarto capítulo do livro do Génesis, onde se conta o assassinato de Abel por Caim. Li algumas traduções (a de Robert Alter, de quem já tinha começado a ler um livro sobre a narrativa bíblica, pareceu-me particularmente boa) e comentários (como o de Bill T. Arnold). Particularmente útil foi um livro, que se pode ler integralmente na net, da autoria de John Byron, Cain and Abel in Text and Tradition. Jewish and Christian Interpretations of the First Sibling Rivalry, Brill, 2011. John Byron não utiliza apenas os textos canónicos, mas igualmente os chamados pseudepígrafos, textos falsamente atribuídos a autores estabelecidos, e os apócrifos. O que se ganha no conhecimento da exegese dos originais é fascinante.

Por exemplo, se lermos os comentários canónicos, centramo-nos numa questão fundamental: porque preferiu Deus as ofertas de Abel, o pastor, às de Caim, o cultivador do solo? A questão é de monta, porque é da expressão dessa preferência que resulta, na aparência, o assassinato de Abel por Caim. E as respostas, como é óbvio, oferecem uma extraordinária subtileza e complexidade. Mas se acompanharmos a nossa leitura pela dos pseudepígrafos, há um novo universo de questões e respostas que se nos abre.

Assim, nota-se que Caim poderá não ter sido filho de Adão mas do demónio, o que explicaria a sua inveja e os tristes resultados desta. O “conhecer” bíblico ganha, nesta leitura, uma outra ressonância: Adão sabia aquilo de que Eva era capaz. E não ficamos por aqui. A mulher com que Caim se veio a casar, Labuda de seu nome, era, pela força das circunstâncias, uma sua irmã. Mas as coisas complicam-se. Tanto Caim como Abel tinham irmãs gémeas. Acontece que Caim julgava de maior beleza a irmã que havia sido destinada a Abel do que aquela que lhe fora atribuída. A raiva pelo facto seria a verdadeira causa do assassinato. Cherchez la femme, com efeito.

Por acaso, não sou coscuvilheiro. Nunca fui muito e, com a idade, atingi mínimos históricos. Mas acho a história desta família originária apaixonante e prometi-me, no futuro, saber mais dela do que sei. Porque, de facto, a única coisa que sei de certeza certa e não se encontra contestada por nenhum autor é que foi mesmo Caim que matou Abel e não o contrário. O que, parecendo que não, não é pouco. À sua maneira, confirma o que o nosso espírito e os nossos sentidos testemunharam quanto à guerra da Ucrânia: foi a Rússia que a iniciou. A diferença é que Putin não conseguiu matar a Ucrânia. Mesmo vivendo todos a leste do Paraíso, há lugares mais recomendáveis do que outros e os habitantes desses lugares até se têm portado bem, pese aos muitos peritos da geoestratégia do Éden.

Entretanto, o mar azul não mexe, excepto para mostrar que está vivo e que participa da nossa existência. Ao longe, mas não longe demais, saltam os golfinhos. A recentemente anexada Scarlett barra-me as costas com protector solar. Na distante e gélida Moscóvia, Putin é exibido à vindicta popular na Praça Vermelha. A Ucrânia é livre. Miguel Sousa Tavares, Boaventura Sousa Santos e Jerónimo de Sousa duvidam de tudo. Na nossa ilha, escondemo-nos dos helicópteros dos produtores de Hollywood, que buscam desesperadamente Scarlett, com a ajuda dos golfinhos que sabem como nos guiar para lugares secretos. Somos heróis, e não apenas por um dia – pela eternidade toda, sem uma só horinha a faltar, sob um sol irrepreensível.

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