Acordo e não demoro nem meio segundo para pensar na sua ausência. Repito mentalmente que você já não está. Repito três ou quatro vezes até me convencer de que nunca estarei convencida. “O meu pai não está aqui”; “o meu pai acabou”. Muitos dizem que é claro que não, que você está presente e me acompanha e permanece. Eu até acredito. Mas o meu pai, do jeito que eu conhecia, o meu pai, do jeito que eu gostava de ter, esse já não está. Esse, de fato, já acabou.

E então eu abro as notícias. E você está nas manchetes do futebol. E está na previsão do tempo. E nas notícias do trânsito. Você está em tudo. Ainda penso em te mandar as notícias que te interessam por whatsapp. Ainda acho que vou te ligar para falar sobre a vitória do Real Madrid. Já se passaram mais de 4 meses e não vejo nenhum indício de que os atos falhos possam começar a dar trégua.

E depois eu abro a geladeira. E te vejo no iogurte. No suco de uva. No queijo branco. Então fujo para o armário e você está no pão sueco, nos amendoins, na pipoca de micro-ondas. Você está na cozinha inteira. Na adega então, nem se fala. Cada uma das garrafas de vinho. E o abridor. E o drop stop. Em tudo, absolutamente tudo. Não há nenhum rótulo sem o seu rosto.

Decido tomar um banho. E quando acho que estando apenas na minha própria companhia a sua falta será menos latente, olho para minhas mãos e vejo os meus dedos, que sempre foram iguais aos seus. Olho para minhas manchas nas unhas. Minhas canelas finas. Meus cabelos escassos. Tudo é você. E todo o resto é a mamãe. Percebo que eu, na verdade, não existo, que sou apenas uma soma de vocês, mas que nesse momento se vê como uma metade desencaixada.

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E a vida segue. Entro no carro, já te ouvindo dizer algo sobre como deve ser a minha manobra. E na rua você me indica o caminho. Me diz para ficar na faixa da direita porque a da esquerda vai parar porque ali em frente tem um retorno. Você está em cada canto da cidade. E não interessa qual é a cidade. Te vejo em São Paulo, te vejo em Lisboa. E fui pra Buenos Aires e te vi. Maceió e te vi. Paris e te vi. E aposto que se for para Nova York, você estará lá mesmo sem nunca ter pisado nos Estados Unidos, estará no sanduíche de pastrami que você nunca chegou a comer e em todo o resto.

Me sento num banco ao sol. Tiro da bolsa o livro que estou lendo. Ler nunca mais será igual. Porque eu lia e te contava e me perguntava se você gostaria daquele livro e te emprestava o livro depois e me inconformava com sua rapidez para ler e depois debatíamos o livro e essa era a graça. Como eu leio agora? Sua morte me deixou um pouco analfabeta. Comecei a ler os livros que você leu, tentando ler com seus olhos. O que será que ele pensou desse trecho? Será que ele gostou desse capítulo? Eu tento reviver você com meus olhos.

Eu te vejo por toda parte e continuo te procurando. Você está em absolutamente tudo e sua ausência não para de gritar no meu ouvido. Te sinto em mim, como se eu fosse uma pessoa e meia, mas a verdade é que há 4 meses não me sinto uma pessoa inteira, então talvez eu só seja essa metade, pelo menos por enquanto. Te vejo em todos os dias do meu passado, em todos os minutos do meu presente e não consigo imaginar um futuro que não seja um vazio desconexo porque, para mim, nunca houve um futuro sem você. Mas eu sigo caminhando. Você está ao meu lado. Você está em toda parte, mesmo sem estar em lugar nenhum. Eu preciso acreditar nisso ou então não saio da cama.