Os apupos para o representante do Syriza no Pavilhão do Casal Vistoso em Lisboa revelaram a esquizofrenia atual do Bloco de Esquerda. O partido sai da sua X Convenção muito unido — ao que parece apenas contestado por um grupo de “radicais românticos” –, mas emaranhado numa estranha contradição: os mesmos que assobiaram os gregos por capitularem perante Bruxelas aplaudiram o apoio do Bloco a um Governo socialista, que diz estar a fazer tudo para cumprir as mesmas regras a que o Syriza se sujeitou (e se a canga de austeridade não é como a dos gregos foi porque o país conseguiu fechar o programa de ajustamento).

A nova encarnação do Bloco de Esquerda como parte da vigente “geringonça” governativa encerra uma dialética que esconde um novo pragmatismo camuflado por um discurso radical. A realidade do BE na era de Catarina Martins assenta numa duplicidade calculista, numa moderação escondida e numa agenda gradualista, que em grande parte o partido não pode assumir. No BE continua a ser crime lesa-pátria alguém assumir-se como moderado ou gradualista. Mas o Bloco entrou no jogo do poder e o jogo do poder é cruel porque ao idealismo contrapõe-se a realidade ou o pragmatismo. Resumindo, o Bloco é contra as regras, mas aceita o que elas definam o jogo e os seus limites. É contra? Sim. Mas pode fazer? Não. Lembra uma certa rábula…

Para tentar justificar esta mudança, o deputado Jorge Costa acabou por definir esta contradição como uma “negociação e conflito” permanente. Eis a chave para perceber o Bloco “catarinista”: na “negociação” é gradualista e pragmático, vai até onde for possível com ganhos limitados, mas suficientes para serem apresentados como troféus para o fim da austeridade; e o “conflito”, ou seja, a retórica radical para todos os lugares onde o Bloco sabe que não pode chegar e portanto pode manter-se como o antigo partido de protesto.

Marisa Matias ensaiou o mesmo discurso justificativo, ao recuperar as críticas da direita que acusava o Bloco de “não ter uma cultura de compromisso e de não assumir as suas responsabilidades”. A eurodeputada argumentou que o BE ainda é o que era: “Nem perdemos as bandeiras nem mudámos no Governo.” Mantêm-se as bandeiras, mas estas tornam-se pequenos galhardetes à mesa das negociações com o PS.

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Os dois discursos de Catarina Martins este fim de semana foram reveladores. No primeiro, falou como se o Bloco liderasse o Governo e enunciou todas as medidas de reversão de austeridade e de política económica, fazendo tábua rasa da existência de dois partidos, um chamado PS (que está em São Bento) e outro que dá pelo acrónimo de PCP, e que não é despiciendo. Tentou provar, por esta via, que na sua nova condição, o Bloco pratica um pragmatismo útil à sua causa. Na intervenção de encerramento, ao enunciar as três condições para a viabilização do Orçamento do Estado de 2017 – aumento do salário mínimo, aumento real das pensões e aumento do Indexante de Apoios Sociais (IAS) – não levantou alto as maiores bandeiras do BE, ou seja, reestruturar a dívida, bater o pé à “ditadura” da Europa, aos mercados, ao Tratado Orçamental. Não pediu a nacionalização da banca ou a saída da NATO. Limitou-se ao que poderia, eventualmente, ser possível dentro das limitações abomináveis impostas pela Europa, que o PS aceita.

O que todos estes dilemas encerram é uma gradual mudança de natureza do Bloco de Esquerda. Esta dialética vai gerar enormes tensões quando estiver em causa um apoio ou queda do atual Governo. Também Jorge Costa lançou uma frase para combater essa ideia: “Não queremos ser o CDS do PS.” No entanto, é isso que o BE quer ser, mesmo usando o argumento de que o CDS quer o poder pelo poder e o Bloco pelas políticas. Quer ter força eleitoral suficiente para o PS não ter maiorias e tornar o PCP descartável na contabilidade parlamentar, de modo a influenciar a governação de forma mais decisiva.

No curo prazo, resta saber até quando é que o Bloco pode manter esta influência a la carte sobre o PS. No longo prazo, se mantiver resultados eleitorais na ordem dos 10%, ou um pouco mais, será um CDS da esquerda e poderá causar efeitos semelhantes ao que se passou na direita. Pode puxar o PS para a esquerda assim como o CDS puxou o PSD para a direita. Mas também perde margem para ser apenas um partido de protesto ou de bandeiras. Se o segredo do CDS é o PSD não ter maiorias absolutas, o mesmo se passa com o Bloco. Será Catarina Martins o Paulo Portas da esquerda, pragmático e idealista, insititucionalizado, que abandonou as bandeiras partidárias rendido ao realismo do poder? Veremos.

O referendo à Europa faz parte do mesmo quadro de análise. O tema atravessou a Convenção, mas a liderança optou por não pedir já a consulta popular que sempre defendera para todos os tratados. O Bloco joga o jogo político. Catarina Martins resolveu dizer que, se houver sanções, a Europa declara “guerra a Portugal”. Aliás, se há consenso no Parlamento é contra qualquer ação punitiva de Bruxelas. Muitos governos europeus não alinham nessas medidas. As sanções estão no ar, mas neste contexto pós-Brexit ainda se tornam mais improváveis. Portanto, o Bloco aqui pode falar alto e manter a retórica radical sem consequências.

Nos próximos meses, a “geringonça” vai depender muito de qual dos Blocos – o pragmático ou idealista, Dr. Jekyll ou Mr. Hyde – terá mais força num momento de crise. Mas é cada vez mais certo pensar que a viabilidade do Governo de Lisboa depende sobretudo da tensão da corda com Bruxelas. Tudo dependerá da flexibilidade da corda realista do Bloco.