A luta contra o racismo ganhou espaço incontornável na atualidade, motivando uma participação ativa de muitos cidadãos na denúncia de atos ou discursos que denotem motivações discriminatórias em relação a raças ou etnias. Como qualquer fenómeno repentino e massificado, esta corrente – que chegou ao nosso continente importada dos Estados Unidos da América após revoltantes episódios de violência policial – revirou a forma de encarar costumes e convenções que antes eram dados como praticamente consensuais. Disso é exemplo a forma algo envergonhada como muitos portugueses olham hoje para a sua História, quando antes era motivo de orgulho. Se recuarmos a 2014, lembrar-nos-emos que o cognome atribuído à nossa seleção nacional de futebol por alturas do Mundial no Brasil era “Conquistadores”, em óbvia alusão aos Descobrimentos. Para 2022, no Qatar, é de esperar que a escolha recaia em “Colonizadores”.
Não deixa de ser estranho testemunhar este tipo de rutura abrupta num país de brandos e, acima de tudo, muito firmes costumes. E aquilo que ainda mais surpreende é que nada nem ninguém está imune ao escrutínio da cruzada anti-racista. Disso é prova a magna obra de Eça de Queirós, datada do século XIX, que caiu com estardalhaço nas suas apertadas malhas. É bom recordar que a obra Os Maias está integrada no plano curricular da disciplina de Português do 11º ano, sendo considerada por muitos como incontornável no panorama literário português. Pairando no ar a possibilidade do “cancelamento”, como agora ditam as costumeiras normas do politicamente correto, foi a própria investigadora que colocou o assunto na ribalta a avançar uma solução bem mais equilibrada. Vanusa Vera-Cruz Lima aconselha a inclusão de uma nota pedagógica que enquadre a obra no contexto da época em que foi escrita, de forma a explicar aos alunos a presença de tais referências sem lhe retirar o valor artístico.
Bem sei que é difícil colocar uma nota pedagógica no Padrão dos Descobrimentos para o enquadrar no contexto da época a que alude, mas seria muito positivo se se aprendesse a moderar ímpetos demagógicos e revisionistas. Tristemente, é já habitual assistir a quem não hesite em surfar as vagas do momento para se sentir na crista da onda. Considerando tal comportamento tão comum aos nossos dias, é impossível negar que a pertinência da mordaz crítica social de Eça de Queirós se mantém atual. E até por isso, é de lamentar que a efervescente consciência social que emergiu em torno do racismo – ao ponto de colocar em causa um dos ex-líbris da nossa literatura – não se tenha alastrado a outros domínios que tanto afetam as nossas vidas. A falta de escrutínio rigoroso às decisões dos líderes políticos, por exemplo, diminui o incentivo a uma governação de qualidade, favorecendo estratégias que se foquem numa retórica facilitista onde o tudo para todos é levado ao máximo possível. É um problema que, infelizmente, não se soluciona com uma nota pedagógica.
Para um leitor que ainda tenha presente o estudo de Os Maias, não será difícil associar esta falta de algum pensamento crítico ao simbólico episódio do “Sarau no Teatro da Trindade”. Nele se relatava que Rufino – um parlamentar eleito por Monção, que se distinguia dos demais pelas suas qualidades oratória – discursava de forma aduladora para as poltronas reservadas à família real – que nem se encontrava presente no local – enaltecendo as esmolas dadas às vítimas de inundações do rio Tejo. Discursando a partir de um estrado, desempenhava a sua arte com tal mestria que muitos se cotovelavam para escutarem de perto as suas palavras, maravilhados com a sua retórica vazia sobre a caridade e o progresso. Já a atuação musical não mereceu qualquer apreço da plateia, com indiferença generalizada e ruidosa, culminando num verdadeiro fracasso. João da Ega, personagem conhecido pelo seu sarcasmo inapelável, havia sintetizado este nosso apreço pela retórica floreada de forma certeira: “Nós, os meridionais, por mais críticos, gostamos do palavreadinho mavioso.”
Só este tipo de postura generalizada pode justificar a facilidade com que a retórica da “viragem da página da austeridade” tenha passado de forma praticamente incólume na nossa opinião pública. Se, por um lado, a carga fiscal atingiu o máximo histórico de 34,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, por outro, as cativações de Mário Centeno, em três anos, já eram superiores à totalidade do que havia sido cativado nos mandatos de Pedro Passos Coelho. Se atentarmos à evolução da receita fiscal, é visível o grande crescimento da receita com outros impostos indiretos em 2016, com destaque para o Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), que permitiu ao Governo arrecadar nesse ano mais 1.142 milhões de euros do que em 2015. Impostos como este não nos são descontados do rendimento a priori, mas para muitas famílias, particularmente no interior do país, não há como evitar o uso da viatura própria perante a falta de soluções de transporte público. Falar do fim da austeridade perante tais dados é abusivo, mas não foi difícil levar os portugueses a acreditar nesta retórica agradável.
A crítica social de Eça não se esgota no episódio do “Sarau no Teatro da Trindade”, ou noutros que, de forma tão cómica, relatam os nossos costumes. Cada personagem é também desenhada para caricaturar determinada postura ou condição social. Na impossibilidade de descrever todas, destaco o Dâmaso Salcede, um novo rico que tudo fazia para demonstrar a sua condição financeira, apenas preocupado em pertencer às elites lisboetas e em ser reconhecido como “chique a valer” – nas suas próprias palavras. No entanto, os modos grosseiros e pouco elegantes evidenciavam as suas verdadeiras origens que tanto procurava escamotear. A sua obsessão com as aparências encontra paralelo nos 260.591 euros gastos pela Presidência Portuguesa da União Europeia para equipar um centro de reuniões em plena pandemia, quando a grande maioria das reuniões deverá decorrer à distância. Alguns dos gastos são particularmente confrangedores: 35.785 euros para bebidas e 39.780 euros para comprar 360 camisas e 180 fatos.
Todavia, parece não fazer confusão aos Portugueses que a sátira social de há dois séculos se pareça muito com vícios que ainda hoje estão bem presentes. O ímpeto antirracista, que levou a uma leitura crítica e rigorosa das palavras de Eça para as enquadrar com uma nota pedagógica, não se estende à vontade de querer que o nosso país evolua para uma realidade diferente da que ele brilhantemente denunciava. Continuamos a deixar-nos embalar no “palavreadinho mavioso”, ou a atribuir demasiada importância às aparências para fora, ainda que isso nos possa deixar mal vistos. Tal é visível em vários media internacionais que criticaram os gastos da nossa “presidência fantasma” da União Europeia, designação resultante do facto de decorrer maioritariamente à distância. O Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros não tardou em vir justificá-los com a necessidade de ter a sala de reuniões preparada para a eventualidade de vir a ocorrer alguma reunião presencial. Ao nosso jeito tão característico, parece que o mais importante para Santos Silva e restante Governo é que a nossa presidência, mesmo que fantasmagórica, seja “chique a valer”.