1. Se na noite das eleições internas do PSD alguém garantisse que 64 dias depois a direção nacional de Rui Rio estaria mergulhada em casos judicias e éticos, confesso que não acreditaria. Muito menos se jurassem que o maior desses casos seria um curriculum vitae adulterado do agora ex-secretário-geral do partido (Feliciano Barreiras Duarte) — numa versão académica ainda mais ridícula do que a licenciatura de José Sócrates concluída a um domingo ou as extraordinárias equivalências de Miguel Relvas.
E não acreditaria porque não só Rui Rio costuma ser minimamente rigoroso nas escolhas das suas equipas como tinha sido bastante claro na declaração política de maior significado que fez até hoje: “Se há coisa que a política precisa em Portugal, é justamente de um banho de ética. Não pode valer tudo. Antes do mais têm de vir os princípios e os valores”, afirmou no dia em que lançou a sua candidatura a líder do PSD. Curiosamente, o dia em que José Sócrates foi acusado de 31 crimes graves na Operação Marquês.
Ora, menos de 24 horas após a demissão tardia de Feliciano Barreiras Duarte, o problema de Rio é bastante simples de resumir: quem promete “banhos de ética” não pode pactuar um minuto que seja com curriculum vitae adulterados ou chico espertices primárias como a de dar a morada dos pais para receber subsídio de transporte e ajudas de custo do Parlamento. Até uma criança de 10 anos percebe que não podemos prometer que seremos a pessoa mais séria do mundo e rodearmo-nos de pessoas que, parafraseando o próprio Rui Rio, têm “princípios e valores” duvidosos. Essa contradição insanável destrói a mensagem política do “banho de ética” que o social-democrata quer transmitir ao seu eleitorado. Mas, acima de tudo, mina o seu principal ativo político: um homem sério que corta a direito porque não tem amarras nem a nada nem a ninguém.
Rui Rio demorou uma semana a perceber que não podia ter a seu lado um homem como Barreiras Duarte mas é duvidoso que saiba que uma determinada imagem de um político não é estática nem eterna. Geralmente, os que se julgam mais sérios que o resto do mundo não sabem essa máxima.
2. O partido espanhol Ciudadanos também fez do “banho de ética” uma poderosa arma política — desde a sua fundação mas em circunstâncias políticas diferentes. Perante uma Espanha política mergulhada de norte a sul em casos de corrupção, o líder Albert Rivera não quis arriscar ser apanhado em contra-mão em 2015 e, perante o rápido crescimento do seu partido, decidiu contratar uma empresa de consultadoria para escrutinar a vida profissional daqueles que seriam os seus candidatos às eleições municipais e regionais daquele ano. Objetivo? Detetar incongruências, falsidades, irregularidades ou até atos ilícitos que os seus candidatos tivessem praticado, de forma a não colocar em causa a imagem de uma nova organização que prometia ser diferente dos principais partidos do sistema: o PP de Mariano Rajoy e o PSOE de Pedro Sanchez.
Esta decisão de Albert Rivera, que já recordei noutras ocasiões, não é propriamente um novidade no mundo ocidental. As estruturas nacionais dos partidos norte-americanos têm por hábito executar esse escrutínio sobre a vida profissional dos candidatos mais relevantes, contratando, inclusive, detetives privados para investigarem a vida privada dos mesmos.
No caso de Rivera, esse escrutínio prévio não evitou que viesse a ter mais tarde alguns dissabores, como a ligação de alguns dirigentes dos Ciudadanos aos Panama Papers — que obrigaram, refira-se, à demissão imediata de todos os envolvidos de cargos partidários ou políticos ganhos em nome dos Ciudadanos. Contudo, tal exercício de escrutínio prévio ter-lhe-á poupado provavelmente muitas outras dores de cabeça.
Eis algo que não existe em Portugal mas que Rui Rio podia aproveitar. Para um político que promete ser tão disruptivo no que à refundação da República diz respeito, este tipo de atitude podia marcar a diferença — se é que quer mesmo ir por esse caminho.
3. O exemplo do curriculum vitae martelado de Feliciano Barreiras Duarte é apenas o último de uma longuíssima lista de pequenos casos que nunca existiriam se os partidos tivessem o mínimo cuidado nas suas escolhas para os principais cargos.
Sejamos claros: caso esse escrutínio prévio existisse, Feliciano Barreira Duarte nunca teria chegado ao cargo de secretário-geral do PSD. Bastaria a alguém da equipa de confiança de Rui Rio ler o seu curriculum vitae, cruzar com a documentação fornecida pelo próprio Barreiras Duarte para detetar o erro óbvio do visiting scholar da Universidade de Berkeley. Já nem vou falar dos supostos livros produzidos pelo social-democrata ou até da tese de mestrado.
Em vez disso, a direção de Rui Rio, velho adepto de teorias conspirativas político-jornalísticas com sociedades secretas pelo meio, prefere a táctica de vitimização e a acusação de campanhas negras com origem no interior do PSD — como podemos ler no Expresso deste sábado.
Para Rio parece que a oposição interna do PSD é a responsável pelo populismo de Elina Fraga — e pela realização de uma auditoria da Ordem dos Advogados que acabou no DIAP de Lisboa. Pelas adjudicações realizadas pela autarquia de Ovar liderada por Salvador Malheiro — que também estão a ser analisadas pela Justiça. E agora pelo curriculum vitae criativo de Feliciano Barreiras Duarte. Bem vistas as coisas, as estratégias de vitimização criativas de José Sócrates já têm seguidores na direção de Rui Rio.
Essa é uma forma de tentar esconder a responsabilidade de Rui Rio quando este tinha a especial obrigação de conhecer minimamente o homem que queria para secretário-geral do PSD. Sendo uma figura, até pela natureza do próprio cargo, da maior confiança do presidente do partido, o nome escolhido, para o bem e para o mal, acaba por ser sempre uma escolha pessoal do líder — e sobre a qual deve prestar contas.
4. Nada que espante num país em que existe uma ausência gritante de um accountability prévio, sério e rigoroso na seleção de titulares de cargos políticos e públicos.
Ao contrário dos Estados Unidos e de outros países ocidentais, não temos a prática de, por exemplo, sujeitar a um escrutínio prévio os titulares de cargos públicos mais relevantes da República, como o de procurador-geral da República, o diretor-geral dos Serviços de Informações da República Portuguesa ou até do diretor da Autoridade Tributária e Aduaneira, entre outros. Nenhum dos indigitados para estes cargos, por exemplo, é sujeito a um escrutínio parlamentar aberto e transparente, findo o qual poderia ser aprovado ou rejeitado.
Se essa fiscalização prévia também existisse nos próprios partidos, talvez Rui Rio atingisse uma das suas metas: combater aquilo que diz ser a judicialização da vida política. É que, tal como Miguel Poiares Maduro defendeu esta semana, não só evitaria a transferência dessas matérias para o mundo da Justiça criminal, como circunscreveria a uma análise política matérias que são, acima de tudo, éticas.
Esse sim é que seria um verdadeiro “banho de ética”.
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