Passou-nos quase despercebido, entre COVID e polémicas du jour, mas houve no mundo um acontecimento que impressiona pelo simbólico e transforma pelo tangível.  Falo do Natal, no Iraque.

O Iraque é um país maioritariamente muçulmano – segundo a Constituição de 2005, o Islamismo é a religião oficial do Estado e uma fonte fundamental da legislação. De uma população de 37.5 milhões, 98% são muçulmanos.

Sobretudo desde a ascensão do Daesh, em 2014, as minorias religiosas diminuíram substancialmente. Antes de 2003, os cristãos eram cerca de 5% da população, 1.5 milhões, enquanto agora se estimam em 250 mil; os yazidis eram cerca de 500 mil, mas este número pode ter caído para cerca de 300 mil; os yarsanis são agora menos de 300 mil e os bahá’ís menos de 2 mil.

As comunidades cristãs do Iraque, sobretudo depois da tomada da Planície de Nínive, viram-se obrigadas a fugir do seu país.

Numa entrevista, em agosto de 2019, o arcebispo de Erbil, Bashar Warda, dizia: “A causa mais imediata foi o ataque do Estado Islâmico [em Nínive], que levou à deslocação de mais de 125 mil cristãos das suas terras ancestrais e que nos deixou, numa só noite, sem abrigo e sem refúgio, sem trabalho e sem propriedades, sem igrejas e sem mosteiros, sem a capacidade de participar em qualquer das coisas normais da vida que dão dignidade; visitas familiares, celebrações de casamentos e nascimentos, partilha de tristezas.” – …em tempo de COVID seremos nós mais capazes de encarnar a dureza destas palavras?

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Um estudo realizado no início de 2017 verificava que, nas condições certas, 87% dos deslocados cristãos desejava voltar. E, de facto, com a derrota do Daesh, os cristãos e alguns outros grupos religiosos minoritários começaram a regressar às suas casas, ainda que, globalmente, a sua presença permaneça reduzida. A extinção dos cristãos no Iraque, uma das primeiras Igrejas Cristãs, está iminente.

E é neste contexto que se dá um acontecimento extraordinário, manifestado em três factos:

  1. A 16 de dezembro de 2020, o dia de Natal passou a ser feriado nacional, através de uma votação unânime no parlamento iraquiano. Resultado de um caminho com avanços e retrocessos, iniciado em 2008, teve agora sucesso graças ao forte apoio tanto do presidente iraquiano Barham Salih como do patriarca caldeu, o Cardeal Louis Raphael I Sako. O Parlamento sinalizou o importante papel das comunidades cristãs no seu país, apesar dos difíceis anos de discriminação e de sujeição à violência jihadista.
  2. Na véspera de Natal, na cidade de Qaraqosh, foram distribuídos mais de 1.400 cartões de Natal aos cristãos dessa cidade, enviados por muçulmanos de todo o país. Dezenas de caixas, decoradas com desenhos das províncias de origem, atravessaram mais de 950 km e vários pontos militares de controlo, para entregar desejos de boas festas, escritos à mão por sheiks, professores, comerciantes e tantos outros, aos seus “irmãos cristãos”. As imagens, disponíveis aqui, mostram o quanto estes cartões, movidos pela fé, uniram uns e outros e os fez irmãos no mesmo país.
  3. Na noite de Natal, o presidente do Iraque, muçulmano sunita, assistiu à missa do galo na catedral de São José e, no final, exortou o governo a fazer todos os esforços no sentido de assegurar o regresso dos cristãos iraquianos, para que possam viver uma vida digna e segura naquele que é o seu país. Sublinhou que o Iraque é um país de diversidade, com muitas religiões e etnias, e que essa é parte da sua força. Insistiu na importância de combater os extremismos e a corrupção.

Três fortíssimos atos tão simbólicos quanto concretos. Um movimento de reparação, de reconciliação e de recuperação que está em marcha e ganhará certamente ainda maior expressão com a visita do Papa ao Iraque, prevista para março.

Reparação, reconciliação e recuperação, parecem-me boas palavras para o Mundo em 2021. Uma espécie de tradução da Esperança, do simbólico para o concreto.