Estamos na semana do Natal e que melhor altura senão esta para fazermos consultas públicas sobre o ensino de educação sexual nas escolas? Apetecia muito mais escrever sobre outras coisas, mas as notícias são o que são, e como os timings de certos ministros e seus directores-gerais não são nada inocentes, começo por contar uma história real que se passou há tempos, com alunos de 11 e 12 anos, a frequentarem um liceu público que conheço muito bem. Os alunos e o liceu, quero dizer.
Num dia de sol de Inverno como estes de agora, eis que aterra na escola uma brigada expressamente enviada pelo Ministério da Educação para dar aulas de educação sexual às criancinhas e jovens. Os formadores vinham aos pares e traziam consigo sacos de plástico cheios até cima. Na altura não era Natal e, por isso, não se adivinhavam presentes. Os sacos eram baratos e destituídos de qualquer rótulo. Ou seja, meros sacos de plástico usados para transportar objectos. Muito bem.
A meio da manhã, as turmas começaram a ser visitadas por aqueles senhores dos sacos de plástico e a visita processava-se da seguinte forma: entravam aos pares na sala de aula, diziam umas palavras razoavelmente cifradas e a despropósito, e uma vez terminada essa espécie de introdução ao tema (inesperado, insisto, pois nem os pais nem os filhos foram avisados de que iria haver aulas extra de educação sexual), dividiam as turmas ao meio.
— Rapazes para um lado e raparigas para o outro!
Porventura mais perplexos e resistentes, os rapazes arrastavam cadeiras e mesas demorando mais a arrumarem-se todos de um lado, enquanto as raparigas faziam o mesmo, de forma talvez mais curiosa, mas igualmente barulhenta. Do lado das raparigas ficava a formadora e do lado dos rapazes, o formador. Todos na mesma sala. Separados por género, mas muito próximos uns dos outros.
Entre risadas, provocações e meias conversas dos alunos, o homem e a mulher mantinham a pose mexendo e remexendo os sacos de plástico, dando sinais de que esperavam que houvesse condições para a sua imperativa aula. A custo lá conseguiram calar os rapazes e as raparigas.
Mal os miúdos deram tréguas, os formadores abriram os sacos pelas asas e, com gestos mecânicos, começaram a tirar lá de dentro toda a mercadoria que traziam. Pénis e vaginas de borracha, de tamanhos variados, que iam dispondo sobre as secretárias onde antes tinham estado objectos tão simples e inócuos como livros e cadernos, estojos e canetas. Os rapazes e as raparigas presentes na sala nem queriam acreditar no que estavam a ver e, de repente, o silêncio tornou-se absoluto. Nem uma piada se ouviu, pois o choque era brutal.
Sem aviso prévio nem explicação plausível, os alunos foram visitados por dois personagens invasivos e intimidantes. Dois s’tôres duplamente estranhos, diga-se de passagem, pois não só nunca tinham sido vistos nas redondezas do liceu, como tinham ar de tudo menos de pedagogos dignos de educar alunos de 11 e 12 anos.
Abreviando uma aula que a partir dali se tornou bizarra, para dizer o mínimo, os s’tôres começaram por fazer perguntas e depois mandaram os alunos, rapazes, colocar preservativos nos pénis que estavam ao alto, pousados nas secretárias da aula. Assim, tal e qual. Com enorme repugnância e tremenda hesitação, os rapazes tentavam não tocar no objecto fálico e faziam brincadeiras com os pacotes de preservativos, fingindo que não os conseguiam abrir. Como os s’tôres não estavam para brincadeiras, desataram a abrir as embalagens e a entregar a cada aluno um exemplar pronto a usar. E os alunos foram obrigados a enfiar aquilo naquela coisa nojenta de borracha. Sim, porque aos 11 e 12 anos não há outra classificação para os moldes em questão.
Do outro lado da sala, as raparigas eram confrontadas com uma parte do seu corpo em borracha mole, obscena, cheia de relevos e mal pintada de cores berrantes. Miúdas das mesmas idades, umas mais acriançadas que outras, todas tiveram que ouvir a mesma lenga-lenga sobre o aparelho reprodutor e tudo aquilo que se seguiu. Mais que embaraçadas, umas mantinham os olhos baixos, enquanto outras se escandalizavam com a cena e outras ainda fingiam que compreendiam a terminologia. Houve quem corasse de vergonha, houve quem desatasse a rir e houve até quem chorasse no recreio, logo a seguir, por ter sido obrigada a segurar naquela coisa enquanto a mulher debitava informação técnica.
Durante uma hora inteira estes pré-adolescentes tiveram a tal aula de educação sexual que, no fim, resumiram como ‘um nojo, uma grande porcaria’. Durante meses e mesmo agora, passados anos, essa aula ficou para todos como uma espécie de trauma. Um episódio para esquecer! Lembro-me bem da descrição de um grupo de alunos que nessa mesma manhã fez a sua catarse em conversas atropeladas à porta do liceu. Falo de alunos que habitualmente nem sequer contavam em casa o que faziam na escola, e abstenho-me de contar os detalhes que eles contaram em cima do acontecimento, por serem maus demais. Eu era uma das mães, estava ali à porta e ouvi tudo o que as outras ouviram.
Se agora escrevo sobre este tema e retomo o triste episódio que nunca passou ao esquecimento é porque em tempo de férias escolares e a coberto de um tempo em que supostamente ninguém fala de temas fracturantes, o ministro da Educação e os seus fabulosos acólitos da Direcção-Geral da Educação decidiram inventar mais uma esquisitice: promover uma consulta pública para a criação de um documento que orientará o conteúdo sobre educação sexual nas escolas, do pré-escolar ao 5º ano. Esta consulta pública termina no domingo de Natal, data espectacularmente adequada para fazer consultas públicas sobre matérias tão complexas, delicadas e sensíveis como o aborto, entre outras. Bonito serviço.
Felizmente nem todos os especialistas em educação tiraram férias ou ficaram obliterados pelas compras de Natal. Uns indignam-se e outros fazem perguntas. A acreditar no que li neste mesmo jornal, Daniel Sampaio pede que ninguém esqueça que a forma como se ensina é tão importante como aquilo que se ensina e recomenda que se “deve trabalhar a partir das dúvidas das crianças e ter cuidado com o método expositivo da informação”. Ora se assim é, como é que este Ministro e os seus queridos acólitos podem justificar a inclusão de matérias como o aborto aos 10, 11 e 12 anos?
Quero saber como é que vão recolher as dúvidas de todos estes miúdos, em todas as escolas de norte a sul do país, ilhas incluídas, e quero ter acesso aos estudos que certamente vão fazer logo a seguir para provar que estas são matérias absolutamente essenciais para dar em sala de aula a miúdos destas idades. Mais, quero ter a certeza de que não vão devassar as crianças ensinando-lhes conceitos abstractos e desfasados da sua realidade. Ou pior, conceitos tão concretos e tão ilustrados que se tornam perturbadores, como aconteceu com as turmas que foram visitadas pelos técnicos dos sacos de plástico.
Isadora Pereira, pedopsiquiatra do Espaço Neurociências, disse a este jornal que está em desacordo com a proposta do governo e tenta acautelar a sanidade mental dos pré-adolescentes do futuro aconselhando bom senso. Cito o que li: “na opinião da pedopsiquiatra é preciso respeitar o nível de desenvolvimento de cada criança, porque nem todas têm a mesma mentalidade”. Parece óbvio, mas este Ministro e os seus incríveis acólitos não ligam a evidências, claro. E continuo a citar: “ há o perigo de passar a informação de forma estereotipada, sem atenção a essas discrepâncias na sala de aula”.
Isadora Pereira fala da sua experiência enquanto especialista para garantir que “aos dez anos as crianças não fazem estas perguntas” e para sublinhar que “as questões do aborto envolvem conceitos éticos que estas mesmas crianças não estão, no geral, preparadas para entender”.
Para mim, que não sou pedopsiquiatra nem lido com traumas reais de crianças e jovens, tudo isto me parece extraordinariamente óbvio. E, por isso, sugiro ao senhor ministro da Educação — que escolheu o domingo de Natal para terminar a consulta pública sobre estas questões! — que passe também esta semana a estudar muito bem toda a matéria para não corrermos o risco de voltarmos a ter nas escolas novas brigadas do saco de plástico, cheios de objectos comprados em sex shops baratas.