Dizem que a pandemia exponenciou boas e más práticas. Os bons terão ficado melhores e os maus conseguem ser ainda mais perversos porque tiveram tempo e circunstâncias para refinar a sua maldade. Os jornais e telejornais falam de uns e outros, sempre. Dão mais espaço e tempo de antena aos velhacos, aos que atacam, burlam, roubam e matam, do que às vítimas, mas isso não é de agora.

As máscaras, os confinamentos e o distanciamento social favorecem os que se escondem para se aproveitarem da miséria alheia, ou explorarem as fragilidades dos mais vulneráveis. Os pais que maltratam os filhos; os filhos que são agressivos para os pais; os casais marcados pela violência diária ou por graves desavenças; as famílias disfuncionais que geram traumas e provocam fraturas, todos ficaram mais protegidos dos olhares de quem os poderia denunciar e, conscientes disto mesmo, os agressores passaram a agir com mais liberdade e impunidade.

A vida das famílias tornou-se infinitamente mais opaca porque tudo o que se passa fica entre as quatro paredes de casa. Muitas destas casas sem grandes condições, onde as vítimas moram e dormem com o inimigo, onde impera a supremacia do mais forte. Se estas vivências já eram duras antes da pandemia, tudo se agravou com o impacto do coronavírus. A juntar às tristes estatísticas da violência doméstica e da negligência familiar há agora outros indicadores aflitivos: o abandono escolar por falta de meios.

Nem todas as famílias de baixos rendimentos são agregados de pessoas em permanente conflito entre si, felizmente, mas a luta pela sobrevivência é dura e também faz muitos estragos. Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão, diz o ditado, e é terrível conferi-lo no contexto atual. Há demasiadas pessoas em carência extrema e já em risco de pobreza irreversível. Se um ou ambos os pais ficam desempregados, os filhos deixam imediatamente de estudar e correm o risco de comprometer para sempre o seu futuro.

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As fronteiras entre aquilo que podemos considerar miséria material esbateram-se e ninguém sabe ao certo como é o quotidiano de homens e mulheres, jovens e crianças, velhos e doentes que moram em casas demasiado pequenas, habitando-as agora todos aos mesmo tempo durante as 24h do dia, 7 dias por semana, há mais de um ano e sem margem para sair à rua. Isto para não falar da exigência profissional diária dos que se mantêm em teletrabalho, mais a demanda escolar dos que tentam estudar e cumprir com os seus deveres a partir de casa. Para muitos, esta sobreposição é impossível de conjugar na prática, e esta impossibilidade pode transformar o quotidiano familiar num verdadeiro inferno.

Talvez haja realmente mais más notícias do que boas, mas também isso justifica a vontade de sublinhar iniciativas resgatadoras da sociedade civil. Na semana passada escrevi sobre a Inspiro.pt, associação criada para acompanhar pessoas que tiveram Covid e ficaram com sequelas funcionais (cansaço extremo, faltas de ar e opressão torácica, entre outras), e esta semana não resisto a falar da Stand4good, que nasceu com o propósito de apoiar estudantes que vivem em situação de comprovada carência económica, mas não são abrangidos pelas bolsas de ação social.

Primeiro, alguns números para dar contexto. Começo com uma estatística do Ministério da Educação, de 2016:

Apenas 19% dos alunos do 3º ciclo cujas mães têm o 4º ano chegam a ter um percurso considerado de sucesso (vs 71% filhos de mães com bacharelato ou licenciatura).

De acordo com a Eurostat (CNE, 2017), em 2016 só 40% dos jovens de 20 anos estavam matriculados no ensino superior;

Em 2019, e ainda segundo a Eurostat, Portugal tinha uma taxa de licenciados entre os 30 e os 34 anos de apenas 36,2%. Ou seja, aquém dos 40%, o objetivo definido na estratégia Europa 2020;

O relatório “Education at a Glance, 2019”, da OCDE, revela que os jovens entre os 25 e os 34 anos que não concluíram o ensino secundário têm uma taxa de desemprego de 14%. Ou seja, duas vezes superior à dos jovens com formação superior (6%) e ganham em média menos 38%.

Dados gritantes cujo eco ameaça perpetuar-se de forma ensurdecedora, sobretudo porque o impacto da Covid-19 se está a fazer sentir de forma particularmente negativa na vida de muitos universitários. Uns chegam a desistir dos cursos enquanto outros congelam as matrículas, na esperança de melhores dias. As dificuldades financeiras agravaram-se em contexto de pandemia porque muitas famílias já perderam as suas fontes de rendimento e os jovens não podem continuar a estudar.

Acresce a esta realidade dramática um cenário que muitos desconhecem e tem a ver com o facto de muitos dos alunos elegíveis para bolsas de estudo da Ação Social ficarem de fora por valores irrisórios. Basta que o baixo (baixíssimo) rendimento dos pais ultrapasse em 1€ o teto estabelecido para a atribuição das bolsas e os estudantes são automaticamente excluídos. Claro que têm que existir regras, mas pertencer a uma família extraordinariamente carenciada e fazer tudo para conseguir continuar a estudar, ficando de fora por umas escassas dezenas ou até uma centena de euros é brutal.

O abandono escolar no ensino superior é duplamente penoso quando os jovens que ficam privados de prosseguir os estudos trabalharam incansavelmente para conseguir chegar à universidade. Alunos talentosos, com aproveitamento escolar extraordinário e boas notas são obrigados a abandonar os estudos por não terem dinheiro para os pagar e é aqui que a Stand4good entra em cena.

A expressão ‘Stand4good’ tem, como sabemos, uma dupla leitura: por um lado, é uma afirmação pelo bem, por outro pretende ser definitiva, para sempre. Foi este o duplo propósito das fundadoras deste projeto-piloto, desta experiência pioneira que já está a apoiar os primeiros 20 alunos que ficaram de fora, excluídos da bolsa de estudos, apesar de pertencerem a agregados familiares extremamente carenciados. Fundaram uma organização que resgata os estudantes que teriam que abandonar os estudos, mas também os acompanha ao longo de todos os anos do curso e, depois, promove a sua empregabilidade.

Este ‘três-em-um’ é possível pela parceria inaugural criada com a Universidade do Porto, mas também pelas parcerias que se seguiram e permitem a tripla aposta em três eixos de intervenção. A saber: a Learn4good, a Mentor4good e a Work4good. Ou seja, a organização paga as propinas aos alunos, garantindo-lhes lugar em diferentes universidades, nos cursos que os alunos escolhem, depois acompanha-os ao longo do curso através de um sistema de mentoria individualizado, e ainda promove uma aproximação gradual ao mundo empresarial, de forma a que estes alunos sejam acolhidos em estágios profissionais que, no futuro, lhes darão créditos e maior empregabilidade.

Em resumo, a Stand4good nasceu e existe para ajudar a quebrar o ciclo de pobreza e exclusão social, para criar mais igualdade de oportunidades e para contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva. Conheci o grupo de 20 alunos que a Stand4good apoia numa sessão online e fiquei muito impressionada com a qualidade humana de todos e a performance académica de cada um. Uns são já excelentes alunos, com provas dadas e médias elevadas em cursos tão diferenciados e exigentes como Economia, Medicina, Biologia, Farmácia, Bioengenharia e Arqueologia; outros fazem o seu caminho superando diariamente impensáveis adversidades; outros ainda conseguem manter-se focados e em dia com as matérias, estudando em espaços com poucas condições.

De tudo o que sei e daquilo que ouvi na primeira pessoa, estes alunos têm um rendimento escolar acima da média e conseguem este prodígio por quererem muito aprender e ganhar competências, mas também por terem a noção exata do privilégio que é estudar. Seria um pecado deixar fora da universidade cabeças brilhantes como as destes alunos, mas há muitos outros a precisarem de ser resgatados e, nesta lógica, todos nunca seremos demais para criar associações, movimentos e projetos para promover a inclusão e a educação.