No final de janeiro do ano passado, a revista The Economist alertava para o facto de que a globalização mostrava sinais de abrandamento. Na capa da publicação semanal dava-se destaque à expressão “slowbalisation” que, no fundo, conceptualizava a ideia de uma desaceleração estrutural dos fluxos de investimento direto estrangeiro, crédito internacional e comércio que se prolongava desde a crise de 2008/09. Hoje, numa altura em que Europa e Estados Unidos colocam em marcha planos para a reabertura das respetivas economias e a China, numa fase já mais avançada, apressa a reativação do seu complexo industrial, a expressão “slowbalisation” parece assentar como uma luva neste mundo que começa a sair de largas semanas de quarentena.
No contexto geral da crescente competição económica, militar e política entre Estados Unidos e China, o Covid-19 veio expor ainda mais as fraturas já existentes nas relações entre as duas potências. Ironicamente, muitas dessas fraturas resultam do fortalecimento da interdependência económica que as forças da globalização criaram. Se em 2001, ano em que a China entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados Unidos viam uma maior interdependência como benéfica para ambos os países e até mesmo como um importante agente para acelerar a abertura e transformação da natureza política do regime chinês, sabemos hoje que Washington deixou de alimentar todas essas ilusões. Pelo contrário, reconhece-se hoje que a globalização e rápido crescimento económico da China foram instrumentais para o fortalecimento do poder do Partido Comunista (PCC).
A deterioração das relações entre Estados Unidos e China, a que agora se soma a crescente desconfiança com que a União Europeia olha para os objetivos de política externa chinesa, resulta de uma nova interpretação do conceito de interdependência que, em vez de colocar enfâse nos seus benefícios mútuos, se concentra nas vulnerabilidades que cria, sobretudo quando uma das partes (leia-se, China) tende a desrespeitar as regras do jogo (leia-se, ter um ordenamento jurídico interno que aceita e protege os princípios do Estado de Direito, livre mercado e concorrência). Bastará, por exemplo, verificar a forma como as grandes empresas nacionais detidas pelo PCC atuam numa lógica de prossecução dos objetivos do partido em vez de uma lógica de mercado concorrencial. O papel que desempenham na estratégia “Made in China 2025” é um bom exemplo da forma como o poder político em Pequim idealiza as funções das suas principais empresas.
No que respeita às vulnerabilidades criadas pela interdependência, atrevo-me a dizer que poucos temas ilustrarão melhor o que está em jogo do que a discussão que entretanto emergiu em torno da necessidade de se repensar a importância estratégica das cadeias de produção internacionais. Até aqui reconhecidas como um dos principais motores da globalização e industrialização das economias emergentes, sobretudo no Extremo Oriente e Sudeste Asiático, a sua principal virtude reside nos ganhos de eficiência gerados pela divisão do processo produtivo em segmentos altamente especializados ligados entre si por uma robusta rede logística que permite às empresas reduzir inventários e adotar um modelo de produção “just-in-time”, nos moldes do modelo concebido pela Toyota no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Uma grande fatia desses ganhos de eficiência, valerá a pena acrescentar, foram e continuam a ser o resultado da combinação de fatores como o acesso a mão-de-obra barata, a redução dos custos com regulação ou a especialização tecnológica.
Apesar dos efeitos positivos desta revolução à escala planetária, que para além de democratizar o acesso a produtos como máquinas de lavar roupa, televisões ou telemóveis também levantou milhões de almas da mais abjeta pobreza, uma das principais consequências da fragmentação da produção industrial em complexas cadeias de produção internacionais foi a aceleração da desindustrialização e a deflação do valor do trabalho na economias Ocidentais. Em contraste com a desolação que tomou conta da paisagem do proverbial Rust Belt e antigas zonas industriais por essa Europa fora, com as consequenciais políticas e sociais que hoje conhecemos, está o dinamismo industrial e a explosão do crescimento urbano em vários pontos do território chinês. No espaço de duas décadas, a China tornou-se o ponto nevrálgico das cadeias de produção internacionais.
Se houve aspeto que esta crise sanitária expôs foram as vulnerabilidades associadas à dependência excessiva da Europa e Estados Unidos (bem como de várias economias no Sudeste Asiático e outras como o México) de recursos naturais e bens intermédios fabricados na China. É neste contexto que se inserem as declarações de vários políticos europeus como, por exemplo, Bruno Le Maire, ministro das Finanças Francês, que recentemente disse que seria importante reduzir a “dependência de algumas potências, em particular da China”, para “recuperar e fortalecer a soberania sobre algumas cadeias de valor estratégicas” em sectores como o automóvel, aviação, equipamento médico e fármacos. Do outro lado do Atlântico, dando voz à estratégica comercial desde sempre defendida pela administração Trump, Robert Lighthizer, Representante para Comércio do Estados Unidos, escreveu um artigo de opinião no New York Times onde defendia o “fim da era da deslocalização da produção industrial para fora dos Estados Unidos” e o consequente regresso de postos de trabalho para solo americano.
Para se ter uma noção do ponto a que a interdependência chegou, valerá a pena olhar rapidamente para a estrutura do sector farmacêutico nas relações entre Estados Unidos e China. Em Julho do ano passado, a US-China Economic and Security Review Commission discutiu a crescente dependência dos Estados Unidos em produtos farmacêuticos importados da China. Não só os Estados Unidos importam cerca de 97% dos antibióticos que consomem da China como aproximadamente 80% dos ingredientes farmacêuticos ativos usados no fabrico de medicamentos terão origem em mercados como a China ou a India. Que aconteceria se a China cortasse o fornecimento destes ingredientes ativos? Mesmo que se procurasse fornecedores noutros mercados como a India, a verdade é que estes também importam grande parte dos seus ingredientes da China. É precisamente em áreas-chave como a industria farmacêutica, semicondutores (que são o verdadeiro motor de combustão da nossa economia digital) ou a indústria automóvel que elevados níveis de interdependência são vistos como uma vulnerabilidade e as relações comerciais com a China uma área que intersecta questões de geopolítica e segurança nacional.
Alguns peritos colocam a hipótese de que num futuro próximo poderemos vir a ter cadeias de produção mais curtas, descentralizadas de dimensão regional. Noutras áreas, pelos custos de especialização tecnológica e potencial uso dos produtos para fins militares, poderemos vir a ter uma separação regulatória vincada entre dois mercados, o chamado “decoupling” das economias americana e chinesa. Um indústria que avança nessa direção é a dos semicondutores com o sinal mais recente dessa transformação a ser dado pela decisão da TSMC de Taiwan, o maior produtor de semicondutores do mundo e fornecedor de gigantes como Apple e Huawei, de construir uma fábrica de 12 mil milhões de dólares no Estado do Arizona.
Pelos custos astronómicos que acarreta, a reorganização das cadeias de produção não se fará do dia para a noite. Será um processo longo que se diluirá no crescimento do fosso das relações entre Washington e Bruxelas de um lado e Pequim do outro. Será um processo onde questões de eficiência económica se submeterão a questões de segurança nacional. Será um processo onde os Estados nacionais, em nome do principio da soberania, passarão a ser mais intervencionistas. Será um processo que, sem dúvida, desencadeará um aumento do protecionismo e a confirmação de que o tal conceito de “slowbalisation” terá vindo para ficar.