Escrita em 1948, a obra de Orwell é, ainda hoje, muito mais do que uma narrativa ficcional. É um reflexo de um totalitarismo nefasto e absoluto, de um regime controlador do passado, do presente e do futuro e dominante em todas as áreas da sociedade. Enquadrá-la no âmbito da Covid e das medidas que foram implementadas nesse contexto é, além de uma premissa limitadíssima, uma comparação que, ouso dizer, indignaria o autor britânico, pela total falta de consciência e apreço pelo facto de se habitar em democracias liberais funcionais.

1984 é, bem, uma das obras literárias de referência do século XX. Mais do que uma obra de ficção, a obra pinta uma realidade que, dentro da sua ficção, foi representativa de um modelo totalitário que vigorou, de forma triste, nesse mesmo século. No estilo alegórico que caracteriza Orwell nalgumas das suas obras mais mediáticas, o autor expressa uma realidade distópica em que o passado, o presente, o futuro são dominados por um partido e por um líder supremo – Big Brother – mais próximo das mais vis ditaduras que hoje reinam em países como o Irão, a Coreia do Norte ou a Arábia Saudita.

Tentar enquadrá-la no contexto das medidas utilizadas para controlo da pandemia é, além de desonesto e de limitado do ponto de vista argumentativo, demonstrativo de um crescente ressentimento com uma democracia liberal que, dentro das suas limitações (que existem e devem ser repensadas) permite aos seus cidadãos o desfrute de um nível de liberdade e poderio económico sem precedentes. A comparação é desmerecedora e coloca em causa o sofrimento de todos aqueles que foram vaporizados, que, oprimidos por uma Thought Police e sujeitos a um modelo de vida com similares a telescreens e com Ministérios do Amor, da Prosperidade, da Guerra e da Verdade, viram e veem as suas liberdades restringidas numa base diária.

De uma forma séria e no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, Orwell deixa-nos vários avisos claros – o carácter horrendo dos regimes que, de forma fictícia, representa; o caminho de passividade que os conduziu até lá e a necessidade de não o trilhar. A descaracterização a que é sujeito este aviso, diria, envergonharia o próprio Orwell e deturparia completamente o intuito com que a obra foi redigida. É totalmente legítimo contestar este tipo de medidas, ser contra o uso da máscara ou contra a existência do Certificado Digital. É o mercado de ideias do debate num funcionamento que considero saudável e, até, crucial ao fortalecimento e a heterogeneização da democracia. Ilegítimo é associá-las a um referido caminho para um regime totalitário que só existe no coração daqueles que, permanentemente, parecem alimentar-se deste tipo de discurso. A democracia liberal, no seu seio de liberdade e de tolerância com os intolerantes, aceita (e bem) este tipo de discurso, percebendo, no entanto, que é nefasto e que corrói um ideal – a própria democracia liberal – que nos devia unir e que deveria ser apreciado pela sua importância e pelo papel crucial que joga na edificação de toda uma sociedade.

Próximas manifestações e protestos, como os que temos visto em França e na Austrália, deveriam ser repensados nesta lógica. Numa lógica de crítica, mas de defesa da democracia e, sobretudo, que se abstenha de comparar o incomparável, numa dinâmica que menoriza as verdadeiras vítimas e que cria outras, inexistentes. Orwell, paradoxalmente, julgaria tais atitudes como orwellianas. Ignorância não é força. É obscurantismo.

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