Um défice público inferior às previsões iniciais e um ritmo de crescimento superior às projeções. Estes são os traços essenciais de um ano de 2017 que António Costa e Mário Centeno vão exibir na lapela como prova de que o caminho que escolheram estava correcto.
Infelizmente, por detrás dos números inquestionáveis e da propaganda oficial nem tudo se mostra tão risonho. E caso se escave com um pouco mais de profundidade, há problemas crónicos que o Governo não está a resolver, mesmo quando tem a seu favor uma conjuntura internacional positiva de que Portugal não desfrutava pelo menos desde a crise que se começou a instalar em 2007.
A aparente saúde financeira das administrações públicas responde àquilo que é exigido pelos compromissos europeus. Mas os esforços de equilíbrio da tesouraria pública não se concretizam sem continuarem a semear um rasto de vítimas. Os persistentes atrasos nos pagamentos aos fornecedores do Estado transformam as empresas em entidades duplamente causticadas. Pela via dos impostos e, também, de uma prática que não merece outra classificação que não seja a de “empréstimos forçados”.
Os dados estão disponíveis através da informação sobre a execução orçamental e foram sublinhados pela UTAO. Depois de um período, entre 2011 e 2016, em que se verificou um esforço para a redução dos pagamentos em atraso, a dívida a fornecedores voltou a subir no ano passado. Aumentou perto de 26% e superou mil milhões de euros.
Este é o valor da soma que não entrou nas empresas que a ela tinham direito. E esta falha terá forçado os fornecedores afectados a suportarem custos para manterem as suas tesourarias à tona de água ou a adiarem, por sua vez, os pagamentos às entidades que os têm como clientes, numa espécie de jogo de dominó de efeitos perversos e prejuízos elevados, em que o sector da saúde é o campeão da infâmia.
Romper com o vício teria vantagens evidentes. Para as empresas, que deviam receber no prazo de 30 dias, mas que têm de se confrontar com os prazos médios de pagamento superiores a três meses que são praticados pelo Estado. Para quem tem de negociar em nome das administrações públicas porque ficaria em melhor posição para acertar as condições contratuais na compra dos bens e serviços que quer assegurar.
O problema é muito simples de entender. Quem sabe que vai receber tarde exige uma contrapartida e revela menor disponibilidade para fazer descontos porque precisa de se precaver contra os encargos adicionais que vai suportar.
Ostentar a fama e recolher o proveito de mau pagador tem um preço. Nesta espiral, que contribui para uma sinistra cultura de dependência e de ligações perigosas entre Estado e empresas, os recursos públicos são espremidos através de uma factura mais elevada. E, pior, o fenómeno é replicado a partir dos maus exemplos que vêm de cima. Em Portugal, as empresas também não são adeptas dos pagamentos dentro dos horários de pessoas decentes. Em média, demoram dois meses a liquidar facturas, o que as coloca entre as piores da Europa.
Manuela Ferreira Leite sugeriu uma solução radical. Radical e particularmente curiosa tendo em consideração que já foi a responsável máxima pela condução das finanças públicas lusitanas, céleres na cobrança e distendidas nos pagamentos.
Para a ex-líder do PSD, as empresas com créditos em atraso sobre o Estado deviam, simplesmente, não pagar impostos durante o período em que ficam à espera de receber. É pena que Ferreira Leite não se tenha lembrado de adoptar a medida enquanto teve poder para o fazer. Mas, se calhar, não é preciso ir tão longe, apesar de se compreender que o ponto em que toca é relevante. Trata-se da sempre actual questão moral. Se o Estado não liquida a horas os compromissos que assume, que direito tem de ser exigente quando quer cobrar?
Há alternativas à proposta de Manuela Ferreira Leite. Para se começar a resolver a situação, basta que o Governo recupere a memória de batalhas eleitorais ainda recentes e tome consciência de que as más práticas não casam bem com o programa eleitoral do PS para as legislativas de 2015, documento cheio de boas intenções em que os socialistas defendiam um Estado “forte, inteligente e moderno”. Em suma, a versão das administrações públicas inspirada nalgum super-herói da Marvel. É só reler e cumprir a promessa.
Depois, talvez venha a parte mais difícil. Exige mexer no edifício da justiça, terreno onde sucessivos ministros já correram o risco de soçobrar sob a eficácia dos grupos de pressão. Um elucidativo estudo do Banco de Portugal revelou, no ano passado, que os tribunais portugueses demoram, em média, 30 meses a concluir um processo em que a matéria em litígio são pagamentos devidos mas não liquidados. Trata-se apenas de uma média, o que significa que a via sacra será ainda mais longa em milhares de casos. Lá está. Também aqui o casamento entre a realidade e o país que quer atrair investimento parece um amor impossível de consumar.
Mário Centeno já reconheceu, no Parlamento, que o Estado agravou a morosidade nos pagamentos em 2017, depois de ter sido confrontado com a marcha-atrás num problema que parecia estar encaminhado para um final feliz. Pode ser o primeiro passo para desmentir que o ministro das Finanças é um Ronaldo lá fora e um Pedro Barbosa cá dentro. Sim, esse mesmo. Aquele avançado que os sportinguistas recordam com carinho, em especial por ser lento ou ficar parado, as duas estonteantes velocidades com que se exibia em campo.