Mário Centeno chegou tarde à discussão sobre a dimensão dos défices públicos registados nos últimos anos, mas ainda a tempo de fazer a pirueta que a honestidade intelectual lhe exige. Gostava de exibir na lapela a medalha do mais baixo défice orçamental do regime democrático português e acontece que o Eurostat não está disposto a satisfazer-lhe o capricho.

Em vez dos vistosos 0,9% do produto, a autoridade europeia de estatística aplicou as regras em vigor e fez cálculos. Para desgosto do ministro, remeteu para as Finanças um saldo negativo de 3% em 2017.

Que importância tem esta guerra para a felicidade dos contribuintes portugueses? Nenhuma. O solavanco no défice pode mexer com o sistema nervoso de Mário Centeno e dos peritos em preciosismos contabilísticos, mas na substância não acrescenta nem retira um cêntimo às responsabilidades assumidas pelo Estado.

A operação de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos era uma necessidade inadiável e, mesmo que fosse excluída das contas do défice, como pretende o ministro das Finanças, não deixaria de estar reflectida na dívida pública. Mais tarde ou mais cedo, o dinheiro que o banco recebeu para melhorar a respectiva solidez financeira será pago através dos impostos que famílias e empresas suportam para que as administrações públicas possam honrar compromissos e, pelo menos no plano teórico, manter em bom funcionamento os serviços e empresas de que é detentor.

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A birra de Centeno com os técnicos de estatística tem interesse, mas por motivos que nada têm a ver com o género de debates que costumam entreter economistas, eurocratas, peritos em contabilidade pública e políticos. Caso se expurguem dos défices, desde 2014, os encargos extraordinários assumidos pelos cofres públicos com o Banco Espírito Santo, Banif e Caixa, conclui-se que, com ritmos diferentes, o saldo negativo entrou em trajectória de redução desde o colossal desequilíbrio legado em 2010 pela gestão de José Sócrates e de Fernando Teixeira dos Santos.

Os 0,9% alcançados agora por Mário Centeno têm mérito de sobra para alimentar a vaidade do ministro, mesmo que não venham a figurar nos registos oficiais por causa da injecção de dinheiro na Caixa. Ninguém dotado de uma réstia de seriedade poderá afirmar o contrário. Mas convém avaliar todo o percurso durante os exercícios que decorreram desde a intervenção da troika sob o mesmo critério e descontar a despesa em que o Estado incorreu para, bem ou mal, acudir às aflições do sistema financeiro.

Se Centeno é o super-herói que conseguiu dominar o monstro depois de ter herdado um défice de 2,8%, o que dizer dos seus antecessores que, quando se sentaram nos gabinetes do Terreiro do Paço, começaram a trabalhar a partir de um saldo negativo de 11,2% e o deixaram dentro dos limites exigidos pelo pacto de estabilidade e crescimento?

A ambição do ministro das Finanças de ver o nome inscrito numa página dourada da História das finanças públicas portuguesas é legítima e o défice de 2017 é um activo no currículo. Mas interessa, também, não ignorar como conseguiu alcançar a meta e perceber se a estratégia escolhida tem bases sólidas, capazes de aguentarem futuros choques. As dúvidas começam aqui.

O Governo não fez qualquer reforma do Estado, nem fará, por falta de vontade ou pelos constrangimentos inevitáveis que estão associados ao quadro de apoios políticos que António Costa escolheu para poder instalar-se em São Bento. Mas Centeno não pode continuar a proceder a cortes cegos na despesa corrente através da arma das cativações sem prejudicar gravemente o funcionamento dos serviços públicos ou a apertar o investimento público ao ponto de comprometer a qualidade das infraestruturas do país. Contas saudáveis e um país moribundo não são um desígnio brilhante.

O ministro das Finanças terá, ainda, de superar duas provas dos nove. A proximidade de eleições legislativas vai aumentar a pressão das hostes socialistas para agradar às clientelas que podem garantir uma vitória folgada e, de caminho, suavizar a agressividade dos parceiros parlamentares. E o desempenho da economia, que proporcionou receitas fiscais superiores às expectativas, uma espécie de jackpot do Euromilhões, vai abrandar.

Os testes a que Mário Centeno vai estar exposto elucidarão se o ministro é especialista em consolidação orçamental ou em simples habilidades orçamentais. Se faz apenas, e de qualquer maneira, aquilo que Bruxelas lhe pede ou se faz aquilo de que o país precisa.