Port Carling, Muskoka Lakes, Ontário (Canadá) — Faz hoje uma semana desde que eu e a tripulação #238 partimos de Marte — ou melhor, de um dos seus análogos terrestres no deserto do Utah. Tenho a nítida impressão de ter viajado pelo espaço-tempo, mas talvez a minha percepção temporal se tenha distorcido ligeiramente: é que lá em Marte passaram apenas 14 sols, mas jurámos de pés juntos que nos pareceu termos passado uma eternidade na MDRS (Mars Desert Research Station). Um pouco como na SciFi rústica do Christopher Nolan, “Interstellar”, talvez?
Da estação ao “Espaçoporto Interplanetário de Denver”, ainda no planeta vermelho, a viagem correu bem, mas daí para diante seria uma afronta. De porta a porta, o percurso demorar-me-ia um total de 77 horas e sete minutos, um autêntico 2022 [sic]: Odisseia no Espaço, e sem dúvida tempo suficiente para voar de Toronto ao Mindelo, com paragens para jantar em Lisboa e na Cidade da Praia. Ou, no futuro, talvez a duração de um shuttle daqui à Lua.
Imagino um remix com o “Intergalactic” dos Beastie Boys, cuja energia caótica será mais apta para esta situação.
É que se desta vez as Montanhas Rochosas não se opuseram à minha passagem (mais desvio, menos desvio), na Costa Leste a história foi diferente. Ainda no Colorado descobrimos que o mundo se reconfinara devido à Ómicron e que milhares de voos tinham sido cancelados devido a uma tempestade. Apercebi-me, tarde demais, que nos canais americanos ninguém considerara representar a progressão da previsão meteorológica a norte da fronteira.
No meu destino, Toronto, esta assumiu contornos históricos, despejando cumulativamente mais de meio metro de neve no espaço de um dia e lançando o caos numa cidade menos habituada aos nevões do que Montréal, Bragança ou a Guarda. Os transportes públicos pararam, as autoestradas encerraram, as pessoas abandonam veículos no meio da rua e a cidade fechou portas para o maior snow day (dia de neve]) da década. O aeroporto não deu conta do recado.
Passaram quatro dias desde que entrei chez moi, exausto. Não despi o pijama nas 48 horas subsequentes, mesmo quando tive que desenterrar o carro à pazada. Como a neve, a exaustão também era cumulativa e exigia muitas horas de sono para compensar as inúmeras perdidas na MDRS.
Já mais descansado, escrevo estas notas finais à beira de um lago rodeado de árvores boreais que não existem no Utah, com um cobertor nas pernas e o fogo da lareira a crepitar aos pés. Lá fora há quase meio metro de neve e estão menos 31 graus Celsius, mas tenho um cobertor nos pés e os meus gatos Kobe e Jake estão enroscados aqui ao meu lado. É tudo uma questão de perspetiva e timing.
As músicas espaciais que me sobejaram estão aqui a tocar: “Space Oddity”, do David Bowie, que nunca é demais repetir, e entretanto já começou a tocar “Spacelab”, de Kraftwerk, na versão colaborativa com o astronauta e geofísico alemão Alexander Gerst, quando estava a bordo da Estação Espacial Internacional. Em seguida tocarão a música electro “Mountains of Mars”, de Electric Wizard, e a balada rock “Ballrooms of Mars”, de T. Rex.
É com esta inspiração que vou lendo os recentes relatórios da MDRS — que continuaremos a receber até final de janeiro. Vejo que nevou nestes últimos dias e imagino que a recém-chegada tripulação #226, que é colombiana, não esteja a apreciar nem a obrigação de limpar a neve dos túneis, nem as restrições às autorizações para as EVA (atividades extra-veiculares), nem as que o frio impõe às baterias dos rovers. Em retrospectiva, tivemos imensa sorte com o clima frio, mas solarengo que nos permitiu fazer o que pretendíamos.
Também constato que a Alice, o ratinho-do-deserto que adoptámos como a Sétima Magnífica, já visitou os jovens astronautas análogos latino-americanos. Passámos o testemunho. A Alice é agora parte da nova tripulação.
I. De Bragança a Lisboa são 9 horas de distância
No Canadá medimos a distância em horas, porque o país é tão grande que o número de quilómetros se torna menos relevante do que o tempo de viagem efetiva. Ou seja, a localização relativa de um local, tendo em conta o tempo de viagem desde o ponto de partida, reduz ou aumenta não só a distância, mas também o isolamento do mesmo.
Lembro-me de aprender a calcular a distância-padrão nas aulas de geografia. Por exemplo, no início do século XX a viagem de Lisboa a Bragança demoraria 2-3 dias. A meio do século XX, demoraria umas doze horas. Hoje, metade.
O Utah, e em particular a MDRS, não é muito longe. Mas, no meio de uma pandemia global, com os acessos aéreos restringidos e tempestades sucessivas, esta distância relativamente curta, ainda que não seja verdadeiramente intransponível, está longe de ser idêntica à distância-padrão. Os efeitos desta distância e da falta de acesso viável às comunicações com o mundo exterior — como terá sido o caso de Bragança na viragem do século, e o nosso caso na MDRS — resultam numa empolada sensação de isolamento que distorce a realidade, criando uma bolha perceptiva.
Tenho pensado neste conceito desde que regressei a casa, em particular porque a viagem de retorno foi tão longa que dei comigo a refletir no privilégio das viagens instantâneas a que nos habituámos e que eliminam a experiência da viagem total. Em 24 horas podemos ir de Lisboa ao Ártico canadiano — mais de 7.000 km e uma amplitude térmica de 70 graus Celsius. Ou seja, uma distância-padrão brutalmente menor do que, por exemplo, Bragança a Lisboa em 1922.
Sem contar os fatores social, financeiro e legal, que são limitantes, mas quiçá menos tangíveis do que a realidade física que aqui menciono, os voos transcontinentais permitem fazer facilmente hoje algo que há cem anos demoraria meses. Numa futura viagem a Marte, teremos igualmente fatores tangíveis e intangíveis (ou menos tangíveis): deveremos contar com sete a nove meses de viagem no espaço, ainda que haja quem pense que até que consigamos reduzir a distância-padrão deste voo interplanetário, não será exequível enviar tripulações ao planeta vermelho.
Provavelmente, o maior desafio não é o técnico — para todos os problemas técnicos, há soluções de engenharia emergentes —, mas o humano. Ainda não sabemos se é possível meter doze seres humanos numa caixa de fósforos durante nove meses, numa viagem interplanetária stressante e arriscada, e fazê-los chegar mentalmente sãos e salvos ao destino. A importância dos estudos sobre a saúde mental realizados pela tripulação #238 (e as muitas que se seguirão) advém desta preocupação. As experiências partilhadas e as conexões criadas pela minha equipa no Utah são um exemplo daquilo que será essencial nessa histórica viagem de exploração, num futuro não muito distante.
II. Os Primeiros Cem da Trilogia de Marte
Falando na tripulação, a proximidade que desenvolvemos ao longo de duas semanas não se desvaneceu com a nossa partida. Nos dias que se seguiram ao regresso ao Colorado, o grupo de WhatsApp dos Sete Magníficos entrou em remissão, soando incessantemente com novas mensagens, conversas saudosas trocadas de quarto para quarto por via digital, como se fossem a nossa mesa de jantar e as conversas diárias à sobremesa.
Tal como os Primeiros Cem da famosa “Trilogia de Marte” do autor Kim Stanley Robinson — que mencionei amiúde nestas crónicas — as nossas vidas e relações mútuas serão sempre complexas a multifacetadas, mas inexoravelmente interligadas, e a nossa experiência e memória coletiva dependentes umas das outras. O que me leva ao conceito filosófico de ubuntu, uma palavra intraduzível em nguni bantu, língua da África Austral, e que se poderia explanar como “eu sou porque tu és” ou “nós somos porque vocês são”, indicando a interconectividade da humanidade.
Li pela segunda vez a Trilogia de Marte completa antes e durante a minha estadia na MDRS. Contemplei quase todos os dias quais dos Primeiros Cem ou dos outros personagens centrais melhor representariam a nossa tripulação, quase toda ela convertida à leitura desta obra por força das minhas frequentes menções. Não existem paralelos diretos, claro está, porque as personalidades e peculiaridades de cada um são complexas demais para serem refletidas por um espelho ou arquétipo narrativo simplista. Pero que las hay, las hay.
Para quem não se interesse, bastará saltar este parágrafo. Mas para os que estejam curiosos — ou sejam fãs — a nossa comandante Sionade Robinson faz-me pensar no personagem central Nadia Cherneshevsky, a líder hesitante cuja força reside na sabedoria e diplomacia que exerce em todas as situações. A nossa espiritual e mui refletiva Kay Sandor, a mestre-jardineira, faz-me pensar numa intersecção entre o personagem quase mítico de Hiroko Ai, a mãe da Areofonia (uma espécie de religião naturalista em Marte) cuja influência suavizante e sábia se faz sentir décadas depois de desaparecer, e o da cientista Marina Tokareva. Já a nossa brilhante, complexa e surpreendente Aga Pokrywka me leva à fortíssima Ann Clayborne, uma das líderes dos Vermelhos, uma facção originalista, ambientalista e anticolonialista. O engenheiro Simon Werner, claro está, seria o notório Arkady Bogdanov, como terei dito numa crónica ou duas. E o Robert Turner, um Simon Frazier com uma pitada de Vlad Taneev, cujas perspectivas aparecem menos nos livros, mas cujas influências se fazem sentir ao longo da trilogia inteira. Um pouco como o nosso Robert. Quanto a mim, pensei no pragmático Sax Russell, mas não me identifiquei. Lembrei-me depois de Art Randolph, que não se incluiu nos Primeiros Cem, mas que ganha o seu lugar através de um misto de pragmatismo, empatia, diplomacia e perspicácia: o homem com um pé na Terra e outro em Marte — como eu.
Esta experiência que apenas seis pessoas partilharam significa que estaremos para sempre interligados uns com os outros, de uma forma ou de outra. Através dos projetos que desenvolvemos, as nossas vidas estarão também interligadas com missões futuras. Um astronauta usando Braided Communications ou um sistema congénere em 2065 estará intrinsecamente conectado com a nossa realidade e a nossa existência.
Como diz um personagem de Susan Sarandon no filme “Cloud Atlas”, escrito e realizado por Lana e Andy Wakowsksy e por Tom Tykwer: “As nossas vidas não são nossas. Estamos ligados aos demais… no passado e no presente. E com cada crime e cada gentileza, damos à luz o futuro (…). Tudo está interligado” [tradução livre].
Sem dúvida, alguns de nós seguirão em contato, esporádica ou frequentemente. As nossas vidas cruzar-se-ão, uma e outra vez, remotamente e fisicamente. Alguns de nós seremos amigos por muitos anos, e mesmo que não o sejamos, lembrar-nos-emos deste momento comum das nossas vidas de astronautas-cidadãos como algo íntimo, especial e ao mesmo tempo, público e pertinente.
Isto é, tal como os Primeiros Cem, estaremos para sempre interconectados.
III. O Paradoxo da Personalidade e as dinâmicas sociais
Estas conjeturas trazem-me a um tema fundamental que mencionei numa das últimas crónicas enviadas da estação, a questão do Paradoxo da Personalidade aventado pelos investigadores Suedfeld e Steel. Estes académicos postulam que o tipo de personalidades que geralmente se voluntariam para atividades tão desafiantes como o espaço ou os habitats polares registarem geralmente um elevado índice de necessidade de aventura, excitação, novidade, controlo e autonomia… em suma, o contrário da “vida rotineira, repetitiva, regrada e pouco autónoma de uma estação de investigação científica”. Aqui, não consigo evitar a cover de “Space Travel is Boring” de Sun Kil Moon (o original é de Modest Mouse, no álbum “The Moon and Antarctica”). É verdade: a vida em Marte é cansativa, mas repetitiva.
Esta foi a realidade com que alguma se não toda a nossa tripulação se deparou: éramos uma tripulação com uma média de idades de 53, muita experiência de vida, cada um com quatro ou cinco valências profissionais e pessoais importantes e complementares para o coletivo, cada um com duas ou três ou quatro carreiras atrás de si, um historial de viagens pelo mundo, narrativas interessantes para partilhar. Ou seja, cada qual aventureiro, curioso, adaptável, com sentido de iniciativa e habituado à autonomia pessoal e institucional. Não admira, assim, o impacto que as interacções desagradáveis com o controlo terrestre (no Outpost da estação) nos tenham posto de pé atrás.
Primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Inicialmente, o assunto gerou celeuma, discussões internas, uma revolução de veludo. Feita sem cutucar a onça. No sol 3 já tínhamos começado a mudar de estratégia. Eu, mais temperamental, talvez dissesse um palavrão irritado de vez em quando, mas assumi uma postura pessoal que funcionou: se uma mensagem enviada pelo controlo terrestre não incluísse uma pergunta clara, um ponto de interrogação, ou um pedido de confirmação, não obteria qualquer resposta minha. Esta atitude reduziu o meu stress e irritação derivados de ter que lidar com atitudes agrestes, autoritárias, arrogantes e frequentemente não só arbitrárias como inconsistentes. Claro que tal só me foi possível porque a comandante, por seu lado, assumiu — apesar do óbvio desconforto que tal lhe causou — o papel de usar um tom conciliador, diplomático e inteligente, que em boa verdade o controlo terrestre não fez por merecer.
A terceira pessoa a ter que lidar com estes dilemas organizacionais com frequência, o nosso engenheiro, demonstrou-se frustrado, irritado e, a meio da missão, farto das interacções e da experiência no seu todo, se não da sua realidade física. O HSO, mais calado, fez sempre de advogado do diabo, até lhe tocar um e-mail mais ríspido, desnecessário, e que ele qualificou de “ingrato”. Os restantes membros da tripulação demonstraram principalmente o seu desagrado com as frequentes quebras de simulação pela equipa local, cuja presença alguns tiveram dificuldade em ignorar. Digamos, portanto, que em menos de uma semana, seria eu ocasionalmente dos menos temperamentais, enquanto os demais se sentiam crescentemente frustrados com as interacções com o base de controlo.
Primeira semana em Marte: do racionamento da água às conversas intimistas depois do jantar
Esta questão vai ao encontro de estudos efetuados ao longo da última década, que revelam uma propensão para que os astronautas numa futura missão a Marte não só venham a ignorar as ordens que considerem desadequadas a partir de determinado ponto de inflexão na viagem, mas talvez cheguem mesmo a desligar todas as comunicações — como se fez na Trilogia de Marte, de resto. Isto, como é óbvio, pode ser problemático do ponto de vista técnico, sendo ainda indiciador de uma necessidade de maior compreensão, colaboração e aprendizagem mútua.
O que me leva a uma reflexão final sobre um dos principais fatores de aprendizagem da missão #238: é indiscutível que a selecção da tripulação foi excelente. Afinal, este grupo de seis seres humanos díspares, intergeracionais, com experiências e enquadramentos culturais diversificados funcionou como uma máquina bem oleada, vivendo sem qualquer tipo de conflito num espaço confinado. Ou seja, as personalidades funcionaram dentro da dinâmica de grupo. Mas, voltando ao paradoxo da personalidade, ao efectuar essa escolha, não terá sido patente ao comité de que formas as mesmas personalidades responderiam ao tipo de estímulo proposto pelo controlo terrestre?
Como escreve a comandante Robinson no nosso relatório final: “O que o paradoxo parece indicar é que os programas se arriscam a recrutar precisamente o tipo de pessoas com maior probabilidade de serem infelizes no terreno. Isto gera perguntas sobre o que pode ser feito para melhorar o recrutamento, orientação, treino e os métodos de comunicação. A estratégia mais promissora é a de assegurar que os potenciais recrutas estão familiarizados com a realidade da experiência, através de orientações e uso de habitats análogos (que é, no fundo, o valor de estações como a MDRS). Uma segunda área a investigar é até que ponto o grau de variedade, flexibilidade e controlo pela própria tripulação pode ser maximizado através de regras e procedimentos. Existe muito mais pesquisa a fazer neste campo.”
Por outras palavras, parece essencial que se aplique às futuras viagens interplanetárias protocolos inspirados no princípio da subsidiariedade, isto é, o princípio de que o maior número de decisões possíveis seja tomado o mais próximo possível daqueles por elas afetados ou pelos próprios, reservando para as autoridades superiores apenas os temas que o mereçam e que não possam ser decididos noutro nível.
IV. Rir é o melhor remédio: fatores de saúde mental
Na canção “Looking for Astronauts”, da banda de Rock The National, de Cincinnati, o astronauta simboliza a ideia de perfeição: um homem alto, atraente, supremamente inteligente, enfim: um Alfa. O problema, como a canção sugere, é que esta busca exaustiva nos pode deixar de mãos a abanar. É verdade que os astronautas de hoje já não são os que os programas espaciais recrutavam nos anos 60. Hoje procuram-se pessoas com capacidade de empatia e de trabalho colaborativo, com personalidades complementares às do resto da equipa. No fundo, o paradigma de selecção moveu-se da necessidade de recrutar líderes aventureiros, individualistas (com o ego correspondente, desafortunadamente) para a necessidade de encontrar equipas diversificadas a todos os níveis e com uma aguçada inteligência emocional.
Este novo paradigma reflete o reconhecimento de que estamos numa nova era e de que, com o advento das viagens interplanetárias um dia destes, precisaremos de pessoas que possam viver salutarmente numa sociedade em circuito fechado durante sete a nove meses ou mais. Ainda há memória viva do desastre social que foi o projeto Biosfera 2, cuja estrutura física é hoje parte da Universidade do Arizona. O projeto foi dissecado no documentário “Spaceship Earth”.
Daí que a pesquisa e aprendizagem sobre o paradoxo da personalidade seja importante, bem como a selecção de grupos funcionais e positivos, a confraternização preliminar das equipas terrestres com as equipas espaciais e a existência a bordo — como sugerem Suedfelf e Steel — de seres vivos (bactérias, fungos, plantas, pequenos mamíferos, etc.), cujos cuidados incitem na tripulação sentimentos continuados de afeição e empatia, ajudando a manter a bordo um estado mental coletivo saudável. Mais a jusante, convém ainda encontrar métodos de mitigação de fatores irritantes, e nesse aspecto, a tripulação #238 tomou as rédeas de um compêndio de pesquisa sobre a saúde mental dos astronautas, escolhido precisamente por se revestir de uma importância que todos reconhecemos.
Assim, por um lado, destacaria a parceria estabelecida com a startup aeroespacial escocesa Braided Communications, que permitiu à #238 estabelecer contacto com os seus entes queridos, enquanto o estudo da City – University of London analisará os efeitos desta comunicação no bem-estar emocional da tripulação. Estas comunicações decorreram com uma latência experimental de cinco minutos, em vez da sincronia das comunicações terrestres. Será o estudo que revelará eventualmente os resultados, claro. O que verifiquei (e senti) empiricamente foi, no entanto, a excitação da tripulação nos dias em que tinham sessões programadas; e por outro lado, a tristeza, frustração e desapontamento de falhar uma sessão. Não há dúvida de que este estudo com tripulações análogas deve prosseguir.
Uma outra startup aeroespacial, esta canadiana, também se juntou a este compêndio de pesquisa. Chama-se Stardust Technologies, e está baseada numa área isolada em Cochrane, perto da Baía de Hudson. A Startust dedica-se ao desenvolvimento de tecnologias que permitirão mitigar os efeitos das viagens de longo curso no bem-estar mental dos astronautas. Apesar de terem vários projectos sobre a mesa, aquele que o diretor executivo Jason Michaud propôs à #238 foi o Projecto Eden, uma plataforma de Virtual/Extended Reality que permitirá personalizar a experiência individual de cada astronauta num Oculus Quest 2 pré-carregado com as suas atividades de escape preferidas. No fundo, um pouco como um proto-holodeck. Apesar de esta tecnologia ainda estar em fase beta, permitiu a toda a tripulação momentos de descontração que serão certamente bem-vindos nessas longas viagens.
Simular vida em Marte: as emergências, o labirinto e as cianobactérias de estimação
Depois, tivemos a sorte de ter a bordo a nossa psicoterapeuta e avó de serviço, Dra. Kay Sandor, cujo cuidado emocional com todos nós se manifestou não só pela sua atitude pessoal, mas também pelos projectos de relaxamento, nomeadamente as várias sessões com ervas aromáticas e medicinais (alfazema, camomila, manjericão roxo), bem como uma sessão particularmente interessante sobre a significância hermenêutica e poder calmante e meditativo do labirinto. Este é um design histórico que não só está presente no logótipo da missão, representando a busca pelo conhecimento, como está também presente em sociedades antigas e modernas pelo mundo inteiro. Pelas nossas mãos, chegou ao terreno análogo a Marte no deserto do Utah.
Mas, o labirinto como conceito já está, de facto, em Marte, e nas suas narrativas. No planeta vermelho existe já uma região batizada de Noctis Labyrinthus (“o labirinto da noite”, em latim), notável pelo sistema labiríntico de vales e canyons estreitos e de altas muralhas. Kim Stanley Robinson menciona-o sobejamente na Trilogia e aparece já um pouco por todo o lado na cultura pop. Penso que, neste assunto, posso falar pelo grupo quando assevero que todos disfrutámos do efeito calmante dos pequenos eventos informais em que a voz da Kay nos guiou e permitiu encontrar momentos de pausa nos nossos dias.
De uma forma mais informal, argumentaria ainda que a saúde mental da nossa tripulação se prendeu não apenas com estas intervenções programadas, mas também com várias outras que o não foram. Antes de mais, a dinâmica social que mencionei anteriormente, a música matutina e o ambiente leve e íntimo que cultivámos sem sabermos como, mas também a alimentação bem confecionada e ingerida em refeições conjuntas, seguida de partilhas pessoais no final de cada dia. Como a comandante escreve no início do nosso relatório de encerramento da missão:
“O nosso compromisso para com a manutenção da simulação e a otimização do nosso tempo significou a adoção das melhoras práticas implementadas por tripulações de sucesso em ambientes muito mais exigentes do que a nossa rotação de duas semanas na MDRS. Envolvemo-nos ativamente num horário de trabalho, de descanso e de brincadeira. Comemos juntos todos os pequenos-almoços e jantares, e quase todos os almoços (entre os quais, a propósito, se contaram algumas excelentes refeições), socializámos e encontrámos tempo para refletir sobre a nossa aprendizagem, desafios e experiências positivas num debrief diário depois do jantar. E partilhámos muitos risos.
Aqui, é necessário dizer que o riso não deve ser considerado um prazer efémero. Estudos demonstram que o humor partilhado desempenhará provavelmente um papel importante na seleção das tripulações que irão para Marte. O riso é uma ferramenta interpessoal essencial para enfrentar o tédio causado por longos períodos de isolamento, rotina, e monotonia social. Ajuda a subir a moral e serve também uma função de comunicação quando há necessidade de expressar frustrações ou insatisfações de uma forma socialmente aceitável e sem causar stress ou conflito adicional. As tripulações que riem juntas são comprovadamente mais produtivas e funcionais, e têm maior probabilidade de permanecer intactas, em vez de se dividirem em cliques e subgrupos.”
Está aqui tudo, preto no branco.
V. Todos nós somos feitos de histórias: narrativas públicas sobre Marte
A minha playlist continua a tocar em loop, passando neste momento “The Space Program”, uma música altamente apropriada, da autoria da lendária banda de hip hop nova-iorquina A Tribe Called Quest. Este vídeo intergaláctico originalíssimo é tão ciente de realidade social do seu tempo (e do nosso) como qualquer observação encontrada num livro de ficção científica soviética. Tenho mencionado a música, os livros e a ficção científica e especulativa nestas crónicas porque a cultura pop alimenta de forma subtil um dos meus projetos de pesquisa na estação: o estudo das narrativas públicas e privadas sobre Marte, baseadas não apenas nos conteúdos científicos, mas também artísticos, literários e testemunhos pessoais.
No decorrer da escrita destas crónicas sobre os nossos percursos individuais como astronautas-cidadãos, esperava poder adquirir um melhor entendimento sobre como as instituições alavancariam as experiências pessoais para refletir o político. Não sei se descobri a pólvora ou se, pelo contrário, andei a perder o meu tempo. Entre crónicas no Observador, posts nas redes sociais, uma presença online e um futuro livro sobre a missão, penso ter cumprido a minha parte, mas continuarei a indagar e questionar certas coisas que me vão pela alma.
Por exemplo, pode uma narrativa aspiracional de exploração ser construída e comunicada de forma contundente? Será que podemos obter o apoio do público para a continuação da pesquisa espacial, não apesar dos desafios terrestres, mas por causa deles, cooptando-os, usando-os como incentivo para melhorar as nossas vidas no planeta azul? Será que conseguiremos articular a necessidade premente de políticas sustentáveis na Terra com as necessidades da expansão interplanetária? Será que conseguimos mitigar a pobreza ao mesmo tempo que exploramos um futuro interplanetário? Podem os nossos problemas terrestres ser usados como rastilho para a expansão para Marte sob um novo sistema de poder? Em suma, poderemos porventura aprender em Marte como construir a utopia que tantas vezes falhou aqui na Terra?
O Kim Stanley Robinson diz que sim, e interessa-me essa narrativa positiva, essa postulação aberta, sonhadora. Interessam-me ainda as motivações dos meus companheiros da #238, que entrevistei na oficina RAM, mano-a-mano, tentando entender coisas simples e coisas complexas: será que iriam para Marte se lhe fosse dada uma oportunidade? E se fosse agora, imediatamente? Interessam-me as perspectivas técnicas e sociais e políticas e culturais deste grupo tão diverso, e as diferentes posturas em relação aos próximos anos de pesquisa e aventuras espaciais. Interessa-me, sobretudo, a criação de um arquivo físico e digital que note a nossa passagem pela MDRS no espaço-tempo, que nos vincule a este período especial da nossa história, e que possa ser usado como referência por futuras missões.
Interessam-me também as narrativas de outrem sobre nós: a perspectiva artístico-científica da Aga Pokrywka, que funde o ser humano com o macroscópico e o microscópico, mas também busca formas multidisciplinares e multimédia de descrever a missão; os estudos aplicados da nossa comandante, que se dedica à investigação na área da liderança pessoal e corporativa e cuja experiência vai agora ser colorida por estas duas semanas indeléveis; a peça do jornalista do The Guardian US, J. Oliver Conroy, a ser publicada brevemente. Interessam-me, e continuarão a interessar-me os temas do isolamento, solidão, motivação.
Interessa-me a resposta à pergunta do David Bowie: “Is there life on Mars?” Esta narrativa, entenda-se, não mais é do que uma continuação de uma reflexão que outros continuarão um dia, muito depois de eu ter partido desta Terra.