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Atividade extraveicular de dia 7 de janeiro de 2022
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Durante as atividades extraveiculares, os astronautas-cidadãos usam fatos espaciais, sistemas de ventilação e rovers

PJ Marcellino

Durante as atividades extraveiculares, os astronautas-cidadãos usam fatos espaciais, sistemas de ventilação e rovers

PJ Marcellino

Primeira semana em Marte: do racionamento da água às conversas intimistas depois do jantar

São seis e estão a simular uma missão em Marte. Não querem ver pessoas, nem intromissões na missão — exceção para o rato Alice. De dia fazem caminhadas no deserto poeirento, à noite conversas íntimas.

Desde o dia 2 (e até 15 de janeiro), o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238, que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, relata diariamente o que se passa em artigos que pode encontrar no nosso site. Neste especial contamos tudo o que aconteceu na primeira semana desta missão.

Vamos até Marte? Pelo menos, vamos imaginar que sim.

Se fosse um astronauta prestes a sair numa atividade extraveicular (EVA) poderia ter de contar com cerca de 45 minutos para vestir o fato espacial de exterior, colocar o sistema de suporte de vida às costas, que lhe forneceria o oxigénio, e fazer todas as verificações necessárias para garantir que não ia ter problemas que poderia ter prevenido. Depois de umas horas no meio da poeira marciana e com os músculos cansados da caminhada, tudo o que poderia desejar no regresso ao habitáculo (chame-lhe casa) era um belo banho. Mas isso só daqui a dois ou três dias.

A água é um recurso escasso (até na Terra, embora nos esqueçamos disso com frequência), mas tanto no espaço como no deserto do Utah esta verdade torna-se ainda mais evidente. As seis pessoas que durante duas semanas vão simular uma missão em Marte neste deserto norte-americano só podem gastar o tanque de água que lhes foi destinado no início da missão — e cujos níveis o engenheiro da missão 238, Simon Werner, controla escrupulosamente todas as manhãs.

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Isso significa: um banho a cada três dias. Como têm sido poupados, vão ter um bónus: podem gastar dois minutos de água em vez dos 60 segundos inicialmente previstos. (Esta é daquelas experiências que pode tentar em casa sem correr riscos — exceto ficar com mais espuma no corpo do que desejaria.)

MDRS no Utah

A estação Mars Desert Research Station (MDRS) no meio das Montanhas Rochosas

PJ Marcellino

“Os canos fazem um ruído peculiar de cada vez que a água é ligada, por isso sabemos sempre que alguém está a gastar. E até já começámos a perceber o ritmo de cada um”, conta Pedro José-Marcellino, primeiro oficial da missão 238. “O meu ritmo é heavy metal, aparentemente.”

Tirando a estufa que tem um tanque próprio — mas que também exige uma boa gestão — toda a água no habitáculo é potável. “Para cozinhar, usamos o que precisamos, até para reidratar a comida”, explica Marcellino. “Poupamos a água desse processo, por exemplo, para cozinhar massa mais tarde.” Tirando os banhos pouco regulares, a equipa pode lavar o rosto e os dentes à vontade, só não pode ser com a água a correr.

A mestre-jardineira Kay Sandor na estufa

Kay Sandor, de 74 anos, é a responsável pela estufa

PJ Marcellino

E na sanita? Bem, como a sanita está com uma avaria, têm de usar um balde para pôr água. O que não é mau de todo, permite-lhes gerir melhor a água que gastam e ficar com mais para o banho. Esta é apenas uma das muitas avarias que a tripulação enfrentou desde que chegou à “estação marciana”, Mars Desert Research Station (MDRS) da fundação Mars Society. O problema era conhecido já na missão anterior e a tripulação da missão 238 chegou mesmo a receber um novo sanitário, mas as constantes intromissões de pessoal externo não estava a permitir entrar verdadeiramente no espírito da simulação da missão em Marte. (Como deve imaginar, em Marte não dava para ligar ao canalizador para resolver o problema no WC.)

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Para as avarias e outras necessidades, na verdade, existe o Simon Werner, o engenheiro alemão da missão. Dono e senhor da RAM, a oficina da estação, arranja o que for preciso (incluindo os sistemas de ventilação dos fatos de EVA) e até fabrica objetos por medida, como o ralador de batata criado a partir da tampa de metal de uma lata de comida desidratada ou um ancinho para o projeto da Kay Sandor — que precisa de desenhar um caminho no solo marciano… (leia-se do deserto do Utah).

Há dias, alguém comentou que sentia falta de uma torradeira e o Simon respondeu, meio a sério, meio a brincar: ‘Should I make one!?’ [Querem que faça uma?]”, conta Pedro José-Marcellino. “Houve uma pausa e a Aga diz: ‘But really…. can you build one?’ [A sério… consegues construir uma?].”

Só Alice, o rato marciano, pode perturbar a simulação

Uma vez na simulação, nenhum elemento da tripulação pode vir à rua apanhar ar, por mais claustrofóbico que se possa estar a sentir. Em Marte, isso significaria morte imediata e as saídas para as EVA têm de ser todas autorizadas. (E também não se pode dizer que estar três ou quatro horas enfiado num fato espacial com o capacete na cabeça resolva realmente o problema de querer apanhar ar.) Para a tripulação, simular que o edifício está pressurizado e que só podem circular pelos corredores que ligam o habitáculo às outras estruturas, como a oficina, a redoma científica ou a estufa, não tem sido difícil. O pior é tudo o resto.

“Teoricamente, a partir do momento em que é dado início à simulação, não deveríamos ver ninguém. Mas vimos.”
Pedro José-Marcellino, Crónicas do Planeta Vermelho: Dia 3, Sol 2 (-9 ºC)

“Há uma discrepância enorme entre as intenções de isolamento [da tripulação da missão MDRS 238] e aquilo que se tem verificado”, desabafa o primeiro oficial. “Parte da equipa da base de controlo (diretora, assistente, estagiários) vivem no campus, em trailers escondidos em canyons vizinhos, mas que vamos vendo de quando em vez.” Assim como vão ouvindo os latidos de Jack, o cão da diretora.

Depois, há uma pessoa que liga o gerador todas as noites. “Algo que o nosso engenheiro poderia fazer.” E há pessoas a fazerem verificações na estufa sem a tripulação ser avisada. “É difícil abstrairmo-nos. Tem sido algo extremamente irritante, para alguns mais do que para outros.”

MDRS no Utah

A energia solar alimenta a MDRS durante o dia. A redoma científica à frente, o habitáculo atrás e a oficina à esquerda

PJ Marcellino

Ao terceiro dia na estação, definido como Sol 2 (segundo a contagem dos dias marcianos), a tripulação deveria ter entrado efetivamente em simulação, mas os sons da Terra (e outros humanos que não a equipa da missão 238) não permitiram que tal acontecesse. Ao jantar desse dia — a primeira refeição digna desse nome —, a equipa decidiu começar o “processo de autonomização” da base de controlo, aproximando-se mais do que aconteceria com uma missão isolada em Marte. Além disso, a constante intromissão da vida real, poderia prejudicar um dos projetos em curso nesta missão: o impacto de um novo sistema de comunicação na saúde mental e bem estar dos astronautas (neste caso, destes astronautas-cidadãos).

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Como se não bastasse terem de fingir que a base de controlo e os respetivos elementos não estão já ali ao lado, ainda têm de ignorar a presença de turistas e curiosos. Desde o primeiro dia que sabem da presença destes “marcianos”. Logo no segundo dia viram o rover da diretora perseguir um jipe de turistas e horas mais tarde voltaram a ver o mesmo jipe dentro da área restrita. De nada servirá os avisos de que se trata de uma propriedade privada.

Estação no deserto do Utah_5

Apesar dos avisos, os turistas e curiosos continuam a ultrapassar os limites da propriedade privada que pertence à fundação Mars Society

PJ Marcellino

“Na EVA de ontem [quinta-feira], a Sionade, o Simon e a Aga deram de caras com campistas num parque de dinossauros e tiveram que os ignorar. Na de hoje [sexta-feira], passámos por um Cadillac Escalade no meio da estrada — possivelmente à nossa espera”, conta Pedro José-Marcellino. “Temos ignorado. Não há mais nada a fazer.” Na entrevista ao Observador (na rádio e site), antes do início da missão, o primeiro oficial chegou a dizer, em jeito de brincadeira: “A única alternativa é fingir que eles são marcianos e entrar em modo de emergência”.

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Há um único intruso que é admitido (exceto pela comandante Sionade Robinson que tem pavor): a Alice, um rato-do-deserto que apareceu logo no primeiro dia que passaram na estação em plenas Montanhas Rochosas. Apanharam-na numa ratoeira com um engodo de manteiga de amendoim para a libertarem no dia seguinte fora dos limites da propriedade da MDRS. Mas, ou Alice encontrou facilmente o caminho de volta ao habitáculo ou algum dos seus familiares o fez, porque dois dias depois um pequeno ratinho passeava-se novamente entre os quartos da tripulação.

A equipa voltou a usar a estratégia da ratoeira com manteiga de amendoim. Desta vez, Alice não se deixou apanhar tão facilmente, mas acabou por sucumbir à gula. Pedro José-Marcellino confessa que tanto ele como a Aga Pokrywka e o Simon Werner se afeiçoaram ao animal, mas a comandante quer o rato fora de casa — diz que “não têm bexiga e urinam por todo o lado”, conta Marcellino. “[Desde que foi capturada novamente,] temo-la alimentado com aveia, amêndoas e ervas do jardim. Penso que a libertaremos na EVA de hoje [sexta-feira], mas esperamos sinceramente que ela esteja de regresso daqui a 24 horas, se tanto.”

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Os momentos intimistas de uma equipa que se conhece por zoom há dois anos

Os dias de pré-missão, antes e depois de chegarem à MDRS nas Montanhas Rochosas, foram marcados por dificuldades, mas isso não fez a equipa vacilar. Pelo contrário, a comandante mantém-se confiante sobre as aprendizagens positivas que podem tirar de toda esta experiência e elogia a capacidade do primeiro oficial de se reorganizar e montar a apertada agenda de todos elementos da tripulação sem perder o sorriso.

“Há cem anos que as audiências parecem gostar de ler relatos com ênfase nestes elementos.” 
Sionade Robinson, comandante da missão MDRS 238

Sionade Robinson tem feito investigação sobre exploradores (outros que não os que se aventuram no espaço) e conta que a ênfase dos relatos é, normalmente, nos perigos, nas privações e no que foge da normalidade. A adversidade “vende”, diz. Além disso, as antigas expedições eram encaradas como desafios tão difíceis que “só poderiam ser realizadas por pessoas extraordinárias”. Agora, não será tanto assim.

Para aquela que na Terra é investigadora na City — University of London, uma expedição deve ter um propósito de descoberta e aprendizagem. “Devemos aceitar e refletir sobre os benefícios positivos de enfrentar os desafios. É uma perspetiva mais inclusiva e menos heroica.” Estes resultados positivos em termos pessoais estão descritos para aqueles que se atrevem a testar os próprios limites, conta. Ao mesmo tempo, desde o início que esta equipa, com os seus projetos individuais, mostrou partilhar interesses comuns ligados à saúde e bem estar.

Atividade extraveicular de dia 7 de janeiro de 2022

A comandante Sionade Robinson (à esquerda) e o primeiro oficial Pedro José-Marcellino numa atividade extraveicular

PJ Marcellino

A equipa conhece-se há, praticamente, dois anos, mas todos os contactos eram feitos à distância, com muitas reuniões virtuais ao longo de todos estes meses — primeiro, mensalmente, mas nos últimos meses todas as semanas. “Assim que foram levantadas as restrições de viagem, aumentámos a frequência das reuniões — por isso tínhamos uma verdadeira sensação de momentum [impulso]. Quando finalmente nos encontrámos no mundo real, foi uma transição natural.

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Pedro José-Marcellino concorda, embora ainda se surpreenda quão rapidamente se adaptaram uns aos outros. “Funcionamos muito bem e de forma bastante intuitiva”. O que não impede que tenham também as suas divergências, mas não existem zangas de verdade. “Estamos todos muito alinhados uns com os outros, respeitamo-nos e não tem havido grandes problemas.”

Os momentos mais relaxados depois do jantar, com música e chá ou chocolate quente, têm permitido falar sobre assuntos do dia, sobre o que funcionou ou o que precisa de ser mudado, mas também conversas mais íntimas, sobre a família, sentimentos ou experiências passadas. “São momentos muito especiais e sentimo-nos muito próximos uns dos outros.”

“Somos todos pessoas imensamente diferentes, com experiências de vida e idades muito distintas, com capacidades técnicas e científicas diversas, com gostos e interesses variados”, comenta o também documentarista da missão. “Apesar disso, penso que estar dentro de um contexto de isolamento convival por um prazo limitado de tempo deu azo a um tipo de partilha humana que se encontra facilmente entres personalidades com esta apetência para a aventura e inerente curiosidade pelo outro.”

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A primeira saída foi uma “caça aos gambuzinos”, as seguintes serão a sério

Em Marte, os dias são chamados de “sol” e têm mais cerca de 40 minutos do que um dia na Terra, mas o nascer e pôr do sol no planeta vermelho não são assim tão diferentes do planeta azul. Em relação à “estação de Marte” em pleno deserto do Utah é ainda mais fácil perceber como decorrem os dias e as noites: durante o início do mês de janeiro, o sol nasce por volta das 7h40 (e por volta das 7h55 em Portugal — em horas locais) e põe-se por volta das 17h30 (tal como por cá).

Na estação MDRS conhecer estes horários é importante: primeiro, porque durante o dia a estação é alimentada a energia solar, por isso é preciso ser poupado depois do pôr do sol — só se usa o propano quando já é noite —; depois, porque as EVA só podem acontecer 30 minutos depois de o Sol surgir no céu e a equipa tem de estar de volta até 30 minutos antes de o céu se esconder no horizonte.

“Por razões de segurança, no máximo dos máximos regressamos sempre à hora indicada no pedido de EVA. Esse é o único dado imutável.”
Pedro José-Marcellino, primeiro oficial da missão MDRS 238

Para todas as saídas, a tripulação tem de pedir autorização à base, especificar os horários e os objetivos. Depois, durante a EVA podem decidir terminá-la mais cedo (desde que tenham completado um terço do tempo marcado), só não podem atrasar-se no regresso à estação. “Por razões de segurança, no máximo dos máximos regressamos sempre à hora indicada no pedido de EVA. Esse é o único dado imutável”, diz o primeiro oficial. Esclarecendo, no entanto, que: “Quebraríamos a simulação em caso de emergência: se alguém se sentisse mal ou se o fato de EVA deixasse de funcionar e a pessoa precisasse de ventilação imediata”.

A equipa só fará a distância que o membro mais fraco do grupo consiga fazer a pé — o que não é muito, de qualquer das formas. Portanto, se alguém indicar por walkie-talkie ou se fizer sinal de que precisa de regressar, regressamos imediatamente”, garante.

“Caso alguém precise de usar a casa de banho, temos permissão para o fazer [durante a EVA, que pode durar três ou quatro horas]. Em Marte, haveria uma solução para as necessidades biológicas [incorporada no próprio fato], portanto não há quebra de simulação”, esclarece Pedro José-Marcellino. Durante esse tempo, a única coisa que podem ingerir é água, que vai numa bolsa dentro do fato e que bebem através de um tubo.

Antes de cada EVA é preciso verificar a meteorologia, a hora de saída e chegada, o destino, mas também o funcionamento do GPS, dos rádios, da ventilação dos fatos de exterior e a carga do rover. As primeiras EVA aconteceram logo no primeiro dia de simulação (Sol 2) tendo Marble Ritual como destino. Foram saídas curtas, porque o objetivo era perceber se a equipa estava preparada para as fazer, mas mesmo assim criaram-se expetativas sobre o que seria este lugar de nome sugestivo. Pedro José-Marcellino apelidou a saída de “caça aos gambuzinos”. As seguintes servirão para recolher rochas e imagens para o documentário, assim como cumprir parte do projeto da Kay Sandor. (Mas sobre isso falaremos daqui a uma semana.)

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