Havia um muro invisível à direita, agora destapado. A responsabilidade da sua exposição é moderada, mas o momento da sua descoberta era inevitável. A longevidade da polémica em torno do manifesto dos 54, em que me incluí, prova que a sua publicação não simbolizou uma fratura na direita, mas uma radiografia que revelou o que já antes se encontrava partido.

Politicamente, entendo os que temem nas críticas ao Chega um risco de perpetuação do PS no poder. Estrategicamente, compreendo também os que receiam que uma separação entre a direita democrática e a direita populista torne o poder inacessível à primeira. E a pergunta é, na verdade, justa: fará sentido erguer as fronteiras à direita em 2020 que António Costa aboliu à esquerda em 2015?

Respondamos-lhe.

Parece-me equívoco, em primeiro, encarar a possibilidade de uma governação chefiada por Rui Rio como um “regresso da direita ao poder”. Pergunto-me, aliás, se a gente pensante que se diz “de direita” se identificaria realmente com o rioísmo instalado em São Bento, na medida em que foram os seus maiores críticos até agora. Já os escutaram, aos rioístas, desde então? Lembram-se do que afirmavam sobre Pedro Passos Coelho? Conseguem imaginar um executivo escolhido pelo atual líder do PSD? Seria “de direita”? De “centro-direita”, sequer? Será avisado confundir o regresso da direita ao poder com a ida de Rio para primeiro-ministro?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Parece-me igualmente duvidoso, em segundo, que se conceda legitimação pública e intelectual a um movimento político que não apresenta um destino minimamente coerente. Em janeiro de 2018, e não foi assim há tanto tempo, Rui Rio afirmava em debate com Pedro Santana Lopes que não faria “ao PS o que o PS fez ao PSD”, isto é, que deve governar “quem chegar em primeiro”, independentemente do antecedente que Costa abriu em 2015. Cinco anos depois, Rio, mais próximo de ser primeiro-ministro, já não pensa da mesma maneira. Alguém consegue dizer, com o mínimo de segurança, o que pensará ele até às próximas legislativas? E depois delas? Nem os seus mais próximos.

Estamos a falar de um homem que, por tática, entregou a governação ao socialismo e a oposição ao extremismo. Resultando a tática, é a ele que vão seguir?

Finalmente, e talvez mais pessoalmente, a questão dos princípios. Na última década, dentro do poder ou fora dele, a direita fez tudo o que podia para despolitizar a atuação do Ministério Público, para sobreviver à comunicação social devorada pelo PS e para manter o mínimo de solidez institucional – ora na prestação de contas ao parlamento, ora no respeito pelos compromissos europeus e ocidentais da República.

Uma direita que apoie Rui Rio ao lado do Chega, um político com tiques autocratas quanto à Justiça, a liberdade de imprensa e o escrutínio parlamentar, terá alguma coisa a ver com a direita livre, aberta e reformista que enfrentou José Sócrates? Vão mesmo endossar uma solução encabeçada por um iliberal e suportada por um movimento populista? Essa direita que, ao contrário de Costa, não queria o poder a qualquer custo para o país? Essa direita que, ao contrário do PS, não vendia o seu património ideológico em nome de arranjos parlamentares? Ainda é essa direita? Ainda há essa direita?

No Reino Unido, com Corbyn, e nos Estados Unidos, com Trump, vimos bem o que acontece aos partidos que trocam a sua identidade histórica por projetos polarizadores: mobilização inorgânica, sucesso aparente, descredibilização constante, desaire eleitoral.

É essa a alternativa à esquerda que tencionam defender?