“Prefere colocar o acento tónico no mais intemporal: o primado do Estado-Nação; a recusa do iberismo; a suspeição perante a diluição da Europa; a vocação transcontinental e ecuménica, com especiais afinidades e responsabilidades em África; a lógica da defesa intransigente do Ultramar Português; a subordinação da política externa a estas coordenadas doutrinárias; a perceção popular intuitiva da sua relevância [de Salazar] e a crónica e negativa assintonia entre as elites, estrangeiradas, aburguesáveis, oportunistas, e o sentir real do povo português; o papel essencial da liderança personalizada, indispensável à garantia da autoridade do Estado, ao controlo dos excessos da liberdade, ao combate contra a crise de valores morais, à disciplina das elites que o não são e à identificação telúrica com o desígnio nacional”.

Foi assim que Marcelo Rebelo de Sousa prefaciou o volume de Franco Nogueira dedicado ao Estado Novo, e assim intitulado, publicado pela primeira vez em 1981 e há vinte anos reeditado.

Volvidas duas décadas, Marcelo é agora recandidato a Presidente da República.

Excetuando a assunção do Ultramar e os controlos não-sanitários da liberdade, muito do seu primeiro mandato e da sua interpretação da magistratura jaz neste parágrafo. Não há nada, absolutamente nada, mais importante para Marcelo Rebelo de Sousa do que a sua ligação ‒ apartidária, apolítica e até além-democrática ‒ ao povo. Foi com ele, em nome dele e para ele que se despiu consecutivamente de si mesmo. Foi com ele, em nome dele e para ele que popularizou ‒ eu diria mesmo pós-institucionalizou ‒ a sua figura e a própria Presidência.

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E é preciso perceber porquê.

Conhecendo melhor do que ninguém os ciclos políticos, por que razão se pendurou Marcelo na efémera popularidade de um governo dependente de uma solução como a “geringonça”? Porquê? Porquê legitimar, escudar e aceitar responsabilidades de um executivo chefiado por um homem conhecido por não manter lealdades a nada nem ninguém? Porquê descer do altar constitucional de Belém e mergulhar na banalização mediática, na presença tornada comum, na exposição quase íntima do seu dia-dia balnear e não só?

No início do mandato, jornalistas como Miguel Sousa Tavares antecipavam que a popularização do Presidente visava antecipar e servir de tampão ao surgimento de movimentos populistas em Portugal. Se assim foi, a estratégia não se revelou propriamente um sucesso. O Chega é filho de uma insatisfação com o regime que o ciclo de Costa e Marcelo não se preocupou em cuidar. As responsabilidades da sua ascensão não são únicas, mas são também deste tempo. A política inorgânica ‒ sem estrutura, sem previsibilidade, sem instituição ‒ está tanto em Ventura como esteve na presidência dos afetos ou no PS que esqueceu Soares, o 25 de Novembro e o seu liberalismo.

A popularidade de Marcelo quebrou tantas barreiras ‒ até protocolares ‒ que se tornou quase impopular para os que se importam com isso e para os que nem sabiam importar-se. A sua proximidade foi tanta que, para alguns, é tida como suspeita e possivelmente interesseira. A sua omnipresença é tal que, mesmo sem querer, lhe marcamos falta caso não apareça de imediato, a qualquer hora, em qualquer intempérie.

Por que razão foi assim?

Talvez Marcelo, com meio século de política vivida, tenha olhado para si mesmo e entendido que este tempo de hoje ‒ do ativismo, do curvar da memória, do fim dos media, da radicalização sem propósito ‒ lhe seria tremendamente desfavorável a ele, católico, conservador, tanto filho do antigo regime como pai fundador deste. E talvez tenha sido isso que o fez, como que uma estátua, abandonar a sua base e juntar-se à multidão, confundindo-se com esta antes de por esta ser derrubado.

Não há político no ativo que represente mais esse cruzar de tempos do que Marcelo Rebelo de Sousa e que lhe fosse tão vulnerável. Não há político no ativo que conheça melhor as conspirações cortesãs, os meandros do salazarismo, as gentes do marcelismo, as traições e rivalidades do pós-Revolução. Marcelo tudo sabe e muitos conheceu ‒ não no sentido sensacionalista, mas no valor cronista, histórico, como consciência não escrita.

Nas presidenciais, por força da sua circunstância, dos seus aliados e dos seus adversários, Marcelo simbolizará o atual regime contra todos os críticos desse regime. Apesar de ter em si mais do que a República que preside, será esse o seu papel. “Conhecem-me há vinte anos”, lembrou no anúncio de recandidatura. E ele conhece-nos há mais.

Ele, que foi contrapoder toda uma vida ‒ nos jornais, nas rádios, nas televisões e até no PSD ‒ representará o poder incumbente em máxima força. Ele, que foi candidato a contragosto do seu partido em 2016, terá o apoio do primeiro-ministro, do líder da oposição e do Presidente da Assembleia da República em 2021. Ele, que almejou uma unanimidade quase soarista, é recandidato no tempo menos unânime de todos: uma crise pandémica.

Ele, inevitavelmente um protagonista da democracia portuguesa, não se resume a ela, mesmo liderando-a.

Não compreender que essas nuances, esses contrassensos, essas dúvidas, se tratam do mais humano que Marcelo tem seria não compreender Marcelo. E seria, sobretudo, não nos compreendermos a nós.